- Peter Moon
- 12/05/2023
- 08:31

A VIDA SEXUAL DOS NEOTROGLOS
Entre estes insetos, quem tem pênis são as fêmeas
Algumas cavernas na Bahia, Minas e Tocantins são habitadas por um grupo de insetos pouquíssimo conhecido, e dotados de uma vida sexual para lá de bizarra. Nos recônditos mais secos daqueles ambientes subterrâneos, os machos e as fêmeas de neotroglos decidiram inverter seus papéis sexuais. Quem tem pênis são as fêmeas. Já os machos possuem estruturas muito semelhantes a vaginas.
Mas a reversão sexual não é completa. Talvez o último vestígio preservado da sexualidade ancestral (e convencional!, ao ser observada pela quase totalidade do reino animal) é a produção de gametas. As fêmeas neotroglas ainda têm o monopólio na produção de óvulos, assim como os machos a produção de esperma.
As convencionalidades param por aí. Na hora da cópula, quando a fêmea penetra profundamente o macho, poderíamos supor que ela estaria tentando usar seu pênis para injetar seus óvulos na genitália do parceiro e fecundá-los no esperma dele. Poderíamos igualmente supor que, daí por diante, a responsabilidade de cuidar do embrião recairia no colo, ou melhor, no ventre dos machos. Nada disso.
Na vida sexual dos insetos deste grupo, o pênis das neotroglas não é um órgão ejetor, mas aspirador! A fêmea usa seu pênis para sugar todo o esperma que o macho acumulou e continua produzindo ao longo da cópula, a mais longa que se tem notícia. Entre os neotróglos, uma rapidinha dura entre 40 e 50 horas. Já uma farra sem pressa pode levar até 72 horas, ou seja, até três dias, como explica o bioespeólogo Rodrigo Lopes Ferreira, do Instituto de Ciências Naturais da Universidade Federal de Lavras (ICN-UFLA). A bioespeleologia é a ciência que estuda as formas de vida que habitam as cavernas.

25 ANOS DE PESQUISA
A vida sexual surpreendente destes pequenos insetos vem deixando os pesquisadores embasbacados desde a sua descoberta, feita por Ferreira em 1998, durante um projeto em cavernas do norte de Minas. “Temos um dos principais laboratórios de biologia subterrânea do país. Empresas de prospecção mineral vivem enviando amostras de insetos coletadas em cavernas. Nossa coleção é imensa. Foi assim que os neutroglos vieram parar na minha mão”.
Ferreira recorda que, em 1998, ao pegar um neotroglo pela primeira vez, já de cara percebeu que o bichinho era muito esquisito. O gênero Neotrogla é muito primitivo. Eles pertencem à família dos prionoglaridídeos, que são um dos grupos mais primitivos de insetos na grande ordem Psocoptera, que tem 5.500 espécies.
Quando Ferreira diz que os prionoglaridídeos são muito primitivos, ele quer dizer que o grupo é muito antigo (tem cerca de 170 milhões de anos, são do período Jurássico), e que mudou pouco de lá para cá. Especificamente entre os psocópteros, os neutroglos são os mais primitivos, ao serem aqueles que conservam o maior número de traços do ancestral comum a todos os psocópteros.
Para estudar aquele bichinho estranho e descrever a espécie, Ferreira enviou exemplares a Charles Lienhard, do Museu de História Natural de Genebra. Lienhard é um dos maiores especialistas mundiais em Psocoptera, também conhecidos como “piolhos-de-livro”. Foi Lienhard quem descobriu o pênis feminino e a reversão sexual nos neotroglos, anunciada ao mundo numa sucessão de artigos que vêm sendo publicados desde 2010.

PARENTE TRANSATLÂNTICO
A primeira espécie descrita pelos pesquisadores, em 2010, foi Neotrogla brasiliensis. Desde então o grupo achou outras três. Descobriram também que o gênero Neotrogla é aparentado a um gênero africano, Afrotrogla. Da mesma forma como acontece no Brasil, os Afrotrogla vivem em cavernas muito secas na África do Sul e na Namíbia, regiões que estavam coladas ao Sudeste brasileiro no antigo supercontinente Gonduana. É por isso que os pesquisadores imaginam que Neotrogla e Afrotrogla começaram a se diferenciar justamente a partir da ruptura do Gondwana, há 110 milhões de anos, evento geológico que deu origem ao oceano Atlântico, separando para sempre a América do Sul da África.
Cada uma das quatro espécies conhecidas de Neotrogla vive em cavernas de regiões distintas, entre o norte de Minas, a Bahia e Tocantins. A principal característica de cada espécie é o formato de seu ginossomo, ou seja, de seu pênis feminino. “Numa delas o pênis tem formato de lança. Numa outra, de uma castanha de caju”, explica Ferreira.
Conforme o pesquisador, o encaixe do ginossomo na “vagina” do macho funciona como um sistema de chave e fechadura. Os machos de cada espécie têm genitálias com formato próprio, que só podem ser penetradas pelo pênis das fêmeas da mesma espécie.
Quando isso acontece, é aí que começa a farra, em cópulas que podem durar inacreditáveis 72 horas. As fêmeas aproveitam a longuíssima penetração para sugar todo o esperma do macho, que guardam em bolsinhas internas. Ao invés da fecundação, o esperma servirá às fêmeas de alimento, para poderem desenvolver seus óvulos. Uma vez chegada hora da fecundação, aí sim a coisa é para valer, e as fêmeas direcionam o esperma sugado dos machos para fertilizar seus óvulos.

REVERSÃO SEXUAL
“Acreditamos que nos neotroglos a reversão sexual aconteceu porque aparentemente os machos são mais eficientes na obtenção de alimento. Eles vivem em cavernas muito secas, com pouquíssimos recursos de subsistência. Como as fêmeas precisam de alimento para desenvolver seus óvulos, mas não são eficientes em achar o próprio alimento, ao longo das eras elas passaram a competir entre si pela atenção — e o esperma nutritivo! — dos machos. Foi ao longo deste processo que as fêmeas acabaram desenvolvendo os seus pênis, e os machos a sua genitália,” explica Ferreira.
O trabalho mais recente do grupo foi publicado em janeiro na revista Royal Society Open Science, e dá conta dos músculos que controlam o pênis feminino, e como este faz para sugar o esperma nutritivo e guardá-lo nas bolsinhas coletoras.
Uma última observação. Não importa se for uma rapidinha de 50 horas ou uma farra de 72 horas. A cópula dos neotroglos só tem chances de durar tanto tempo assim num ambiente onde os predadores são virtualmente inexistentes. Em todos os animais, o ato da cópula é um momento de vulnerabilidade, que não passa despercebida aos olhos dos predadores. Logo, a cópula precisa durar o tempo suficiente para garantir a fecundação, e, simultaneamente, ser rápida o bastante para evitar o ataque dos predadores.
Mas os neutroglos não precisam se preocupar com isto, não é verdade?

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