serra do rio do rastro - uma viagem geológica no tempo

UMA VIAGEM (GEOLÓGICA) PELO TEMPO

Sobre cartas geológicas, vulcões vomitando lava, cordilheiras submarinas e dinossauros

Já parou para olhar um mapa geológico? Sabe o que é isso? Sou nerd e posso afirmar: pode ser uma experiência fascinante. Perder os olhos pelos meandros e manchas coloridas de uma carta geológica é para mim o equivalente a realizar uma viagem no tempo. É sério! Uma carta ou mapa geológico exibe informações sobre o que está por baixo da superfície terrestre. Por exemplo: qual é o tipo, a idade e a localização das rochas (ou melhor, das formações geológicas) sobre as quais se assentam cidades, florestas, campos, pântanos, estados, bacias hidrográficas, países ou até mesmo continentes. 

A viagem no tempo é possível quando se sabe que as camadas geológicas representadas por uma mesma cor no mapa são formadas por rochas depositadas em um mesmo período. Como todas as áreas verde-claras nessa carta geológica parcial da América do Sul. Elas representam rochas depositadas entre 130 e 66 milhões de anos atrás, portanto no período Cretáceo, quando vagavam por nosso continente os titanossauros, os maiores animais terrestres que existiram (não confundir com os tiranossauros norte-americanos).

O Mapa Geológico da América do Sul, na escala 1 : 5 milhões é uma joia preciosa em termos de compilação do conhecimento geológico do nosso continente, conhecimento que vem sendo acumulado desde o século 19! Foi o resultado de um esforço internacional capitaneado pelos serviços geológicos do Brasil (CPRM), Argentina, Chile, Colômbia, Equador e Peru. Se quiser baixar o mapa, procure pelo link no final desta página. Mas cuidado, pois a imagem é imensa. Se seu computador não tiver memória suficiente, você não vai conseguir abri-la (aconteceu comigo…).

O mapa foi terminado em 2019, pouco antes da pandemia. Tomei contato com ele através deste artigo na revista Episodes, assinado entre outros por Carlos Schobbenhaus, do CPRM.

 

 

Viagem geológica no tempo

 

Viagem geológica no tempo — Observe, neste mapa geológico da América do Sul, a grande área verde-clara vertical no Sul do Brasil. Onde hoje fica a Serra Geral e boa parte de São Paulo e de Minas Gerais, havia há 140 milhões de anos um grande deserto de dunas, engolido pela lava de alguns dos maiores vulcões que existiram.

 

PROVÍNCIA PARANÁ-ETENDEKA

O que mais me impressiona nesta carta geológica continental é a sua riqueza de detalhes. Cada manchinha colorida representa formações geológicas depositadas há dezenas, centenas, ou até mesmo bilhões de anos no passado. 

Darei apenas um exemplo da maravilhosa viagem no tempo que esta carta suscita. Voltando às porções do mapa que são contemporâneas dos dinossauros, a primeira coisa que me saltou aos olhos foi a imensa mancha verde-clara vertical, quase oblíqua, que se destaca sobre as regiões Sul e Sudeste do Brasil, também invadindo o Paraguai, o Uruguai e o nordeste da Argentina.

Aquela mancha verde-clara de 1,5 milhão km², e que se espraia ao longo da bacia do rio Paraná, foi criada por muitos dos maiores vulcões que inundaram com lava a superfície do planeta, entre 138 e 128 milhões de anos no passado. Naquela época, quando o período jurássico acabara de findar, e o Cretáceo apenas iniciava, ainda não havia o oceano Atlântico Sul. América do Sul e África ainda se encontravam unidas no supercontinente austral de Gondwana. 

América do Sul e África começaram a se separar quando uma incomensurável pluma de magma que vinha ganhando volume, temperatura e pressão abaixo da crosta terrestre finalmente irrompeu à superfície, sob a forma de uma formidável cadeia de vulcões que passaram a vomitar bilhões de toneladas de lava, inundando a superfície.

 

 

Serra Geral - viagem geológica no tempo

 

Viagem geológica no tempo — os belos penhascos da Serra do Rio do Rastro (SC) exibem inúmeras camadas de basalto empilhadas umas sobre as outras. Cada uma delas é o resultado da lava derramada por uma mega erupção vulcânica ocorrida há 132 milhões de anos.

 

O primeiro ponto de ruptura entre os dois continentes se deu, deste lado do Atlântico, onde fica hoje o litoral da região Sul e, do lado africano, na altura da costa da Namíbia. As rochas sobre as quais se assentam aquelas duas regiões são idênticas, apesar dos 8 mil quilômetros de oceano que hoje as separam. Foram formadas pelo vazamento de basalto da Província Magmática Paraná-Etendeka, a segunda maior província vulcânica continental em área do planeta (o planalto Etendeka fica na Namíbia).

Não existe hoje no planeta nenhum vulcão em atividade que se pareça, mesmo que remotamente, com as dezenas de vulcões que pipocavam pelo Sul do Brasil há 132 milhões de anos. Apenas para se ter uma ideia, entre as 16 maiores erupções vulcânicas conhecidas, oito aconteceram em vulcões da Província Magmática Paraná-Etendeka — sendo que três entre as quatro maiores.

Foi tanta a lava que extravasou dos antigos vulcões hoje desaparecidos (Campos do Jordão (MG) se assenta na antiga caldeira de um deles), que acabou por cobrir toda a região Sul e parte da região Sudeste com um cobertor de basalto de três quilômetros de espessura. A este cobertor damos hoje o nome da Serra Geral, que corta diagonalmente o estado do Paraná, divide o litoral do interior de Santa Catarina e corta também o Rio Grande do Sul, ingressando pela Argentina e Uruguai.

Na Serra Geral, mais especificamente na sua porção catarinense, conhecida como Serra do Rio do Rastro, quem vislumbra os seus belos despenhadeiros, pode perceber claramente as dezenas de camadas de basalto depositadas umas sobre as outras, formando uma pilha de 1,5 quilômetro de altura. Cada uma daquelas camadas foi formada pela lava derramada por uma única das inúmeras mega-erupções ocorridas há 130 milhões de anos.

 

 

aquifero guarani

 

Viagem geológica no tempo — Dunas de deserto de 140 milhões de anos foram cobertas por lava e formaram o Aquífero Guarani, o maior reservatório de água doce da América do Sul

 

AQUÍFERO GUARANI

Com o progressivo alargamento do Atlântico Sul, a pluma de magma continuou jorrando, só que não mais sob o continente, mas diretamente no solo oceânico. Com efeito, aquela mesma pluma de magma continua ativa até hoje, vomitando lava e formando novos vulcões na cadeia dorsal meso Atlântica, a cordilheira submarina de 40 mil quilômetros que serpenteia no centro (e no fundo) do oceano Atlântico. A mesma pluma de magma que jorrou pela primeira vez à superfície há 138 milhões de anos, ainda é hoje a responsável pelo contínuo afastamento entre América do Sul e África, à razão de dois centímetros por ano.

Há tantas outras coisas para escrever apenas e tão somente sobre aquela mancha verde-clara do mapa. Como, por exemplo, que, antes do derramamento basáltico, havia nas regiões Sul e Sudeste um grande deserto de dunas, o deserto Botucatu, que o cobertor de lava cobriu completamente. Ao fazê-lo, compactou e cozinhou as antigas dunas, transformando-as em arenito. 

O arenito é uma rocha porosa, que tem a capacidade de armazenar água. E foi o que aconteceu. Ao longo de dezenas de milhões de anos, mais de um milhão de quilômetros quadrados de antigas dunas solidificadas foram encharcados com a água subterrânea até formar o Aquífero Guarani, uma das mais importantes reservas subterrâneas de água doce do planeta. Seus limites se confundem com os contornos da região do derramamento basáltico que erigiu a Serra Geral há mais de 130 milhões de anos.

Ao olhar aquela mancha verde no mapa geológico, eu poderia ainda lembrar das calçadas de pedra portuguesa, tão comuns nas cidades do Estado de São Paulo. Sem os antigos vulcões, não haveria pedras de mosaico português, já que elas nada mais são do que a areia do antigo deserto Botucatu cozida até virar arenito. 

Além das minas de arenito espalhadas pelo Estado de São Paulo, o que sobrou do antigo deserto pode ser visto na Pedreira São Bento, em Araraquara (SP). Lá existe uma paleo duna, ou seja, uma duna de 130 milhões de anos. O local, aliás, é uma rica mina de pegadas fossilizadas de animais que habitaram aquele deserto perdido nas areias dos tempos. 

Quanta coisa dá para imaginar olhando apenas uma porção desta maravilhosa carta geológica, não é mesmo? 

 

 

Pedreira São Bento

Pedreira São Bento, em Araraquara (SP) — Corte de uma paleo duna. Pode-se observar as pegadas do grande ornitópode em fase de retirada, no centro, à dir. (foto: Luciana B. Fernandes)

Gostou de fazer esta viagem geológica no tempo? Quer saber mais sobre nossa história natural?

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3 comentários em “Uma viagem (geológica) no tempo”

  1. Muito obrigada pelo trabalho incrível de divulgação científica, mas muito muito obrigada mesmo! Comecei a pesquisar o assunto pra entender por que a comida é tão saborosa aqui na Serra Gaúcha e não imaginava que a ‘terra roxa’ me levaria tão longe!

    1. Muito obrigado, professor Cassiano. Se desejar, me conte quais seriam as áreas/disciplinas que gostaria de ver reportadas aqui no canal. Um abraço, Peter

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