- Peter Moon
- 05/05/2023
- 10:25

EXTREMA CRUELDADE NA CRIAÇão DE TILÁPIAS
Pesquisador da Unesp investigou efeitos do canabidiol no bem-estar das tilápias. Na piscicultura, elas são criadas de forma estarrecedora
“Você quer dar maconha pra peixe?”, foi a reação de espanto que Bruno ouviu de professores e colegas quando explicou o projeto de mestrado que tinha em mente. A mesma reação tive eu, no instante em que bati os olhos no título “Canabidiol melhora o bem-estar nas tilápias do Nilo”. Imediatamente esbocei um sorriso e pensei: “Isso é sacanagem. Não pode ser coisa séria!”.
Só que era… no instante em que percebi que o artigo havia sido publicado pela revista Scientific Reports, do grupo Nature — e a Nature não é renomada r respeitada por publicar besteiras nem bobagens. Sabendo disso, perguntei a mim mesmo: “Será que tilápia tem barato? Quem é o maluco por trás dessa pesquisa?”

LATA DE SARDINHAS
Interessado em investigar o bem-estar em animais, em 2018, então recém-formado biólogo, Bruno Camargo-dos-Santos teve uma inspiração para o tema da sua dissertação de mestrado. Ele sabia que o canabidiol tem propriedades ansiolíticas positivas em humanos e roedores. Foi por isso que o jovem pesquisador decidiu verificar se o mesmo seria verdade entre peixes. Para tanto, elegeu a tilápia, peixe criado em cativeiro em condições do mais absoluto estresse.
“Nem sabia que peixe tem estresse? Peixes são os animais mais estúpidos que existem. Peixe não tem sentimento!”, foi o que eu sempre pensei… “Só que eles têm”, esclareceu Bruno. “Podem não ser sentimentos como os seus e os meus. Mas eles existem”. Bruno decidiu saber se o canabidiol daria conta de aliviar o estresse das tilápias, assim como alterar seu temperamento agressivo.
O canabidiol é uma das substâncias psicoativas da Cannabis sativa, planta a partir da qual se obtém a maconha. Mas antes fique em dúvida, não, o consumo de canabidiol não é responsável pelos efeitos psíquicos da maconha. Quem faz isto é outra substância, o THC.
O uso medicinal do canabidiol é permitido pela Anvisa desde 2015, uma vez que se conhece a atuação positiva da substância sobre o sistema nervoso central. Em humanos, o canabidiol é indicado no tratamento de doenças psíquicas e neurológicas como a epilepsia, o mal de Parkinson e a depressão. Os psiquiatras também o prescrevem para o controle da ansiedade e do estresse. Entre camundongos, o canabidiol reduz o estresse e a agressividade.

AQUICULTURA AMORAL
Muito embora a produção comercial da tilápia tenha iniciado no Quênia, nos anos 1920, sua piscicultura é milenar. Hieroglifos em túmulos egípcios sugerem que a tilápia-do-Nilo já era criada há mais de 3 mil anos.
Quanto ao Brasil, a criação comercial de tilápias começou nos anos 1990. Bastaram 30 anos para nos tornarmos o quarto maior produtor mundial. A produção de carne de tilápia responde por 64% da piscicultura brasileira. Foram 550 mil toneladas de carne de tilápia em 2022. A tilápia-do-Nilo (Oreochromis niloticus) é a espécie de preferência na piscicultura. Mas aqui também são criadas a tilápia azul, a tilápia de Moçambique e a tilápia de Zanzibar.
O produto comercializado com o nome de Saint Peter é uma variedade geneticamente modificada da tilápia-do-Nilo. A variedade foi desenvolvida em Israel para se obter peixes maiores. O nome comercial Saint Peter (ou São Pedro, o apóstolo que andou sobre as águas) foi escolhido devido às diversas passagens bíblicas que fazem referência aos peixes do mar da Galileia. Obviamente não sabemos se os antigos hebreus pescavam tilápia. O que se tem certeza é que, hoje, são elas que predominam no mar da Galileia.

PRODUÇÃO CRUEL
Para sustentar a gigantesca produção brasileira de carne de tilápia, todos os anos centenas de milhões de peixes são confinados em tanques de engorda de somente 4 m³, completamente abarrotados.
Na produção intensiva, a densidade nos tanques chega a 200 peixes por metro cúbico. Na produção superintensiva, beira os 400. É o equivalente a espremer 400 peixes de até um quilo num aquário de um metro cúbico onde caberiam em condições adequadas apenas quatro indivíduos.
Pare um momento para considerar essa barbaridade. Em nosso país existem dezenas de milhares de tanques de engorda de tilápia. Na produção intensiva, cada tanque de mil litros aprisiona em média 1.500 peixes. Agora imagine uma lata de sardinhas selada com 1.500 peixes vivos prensados lá dentro. A realidade das tilápias não é muito diferente.
Para piorar, a piscicultura da tilápia é realizada exclusivamente com machos, já que eles crescem mais rápido e ficam maiores do que as fêmeas, aumentando a produtividade. O problema de trabalhar apenas com machos é que a tilápia é uma espécie poligâmica. Por isso, seus machos são muito territorialistas e agressivos.
Livres na natureza, nos rios e lagos da África, os machos lutam entre si até restar um macho dominante, que controla as fêmeas. No cativeiro, eles são obrigados a sobreviver esbarrando uns nos outros o tempo todo, dia e noite, durante os quatro meses de engorda.
“Embora as interações agressivas façam parte do comportamento natural das tilápias, se constantes e intensas, como acontece na aquicultura, podem causar graves lesões corporais e mortes, causar dor, aumentar o gasto energético e levar os animais a sofrer estresse”, explica Bruno. Nos tanques de engorda a taxa de mortalidade chega a 10%.
Como se vê, faz todo o sentido a decisão de Bruno investigar os efeitos do canabidiol sobre o comportamento das tilápias, criadas em condições martirizantes e cruéis.
Na busca imoral pela produtividade máxima, o bem-estar das tilápias não é absolutamente algo levado em consideração. Os produtores agem como se as tilápias não fossem seres vivos. Apenas e tão somente produtos num tanque.

OS EXPERIMENTOS
O experimento de Bruno com tilápias e canabidiol foi realizado no Instituto de Biociências da Unesp, de Botucatu. Dos diversos desafios enfrentados, o mais complicado foi, sem dúvida, identificar as mudanças de humor nos peixes. “Foi muito desafiador. Se já é difícil identificar sinais de estresse e bem-estar em mamíferos, imagine só num peixe?”, explica Bruno.
O primeiro passo foi conseguir junto aos produtores 60 tilápias jovens, que foram mergulhadas em aquários individuais de 22 litros. O segundo passo foi obter o canabidiol junto ao Prof. Renato Filev e ao finado Prof. Elisaldo Carlini (1930-2020), ambos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Carlini foi referência mundial e um dos pioneiros nos estudos farmacológicos sobre o potencial terapêutico da Cannabis.
O canabidiol utilizado por Bruno veio na forma de um sal muito solúvel em óleo e concentração de 99%. Após estabelecer quais deveriam ser as doses mínima (1 mg/kg), intermediária (10 mg/kg) e máxima (20 mg/kg) a serem dadas aos peixes, Bruno dissolveu aquele sal em óleo de soja aquecido, borrifando o resultado sobre ração comercial para peixes. A ração condimentada com canabidiol foi dada individualmente às 60 tilápias, três vezes por dia ao longo de um mês.

TESTE DO ESPELHO
No experimento de estresse social, voltado para avaliar a agressividade das tilápias, Bruno recorreu ao teste do espelho, pois se sabe que as tilápias macho atacam a própria imagem quando refletida num espelho colocado diante do aquário. A agressão provocada pelo espelho é um preditor de estresse individual e está associada à expressão no hipotálamo de genes envolvidos no estresse dos peixes.
Bruno separou as tilápias em quatro grupos: aqueles que receberiam as três doses de canabidiol, além de um grupo controle que recebeu placebo, ou seja, só óleo, nada de canabidiol.
O teste do espelho foi realizado por dez minutos em cada um dos 60 peixes, por cinco vezes durante um mês. O primeiro teste foi feito antes do início da administração de canabidiol. Os testes seguintes aconteceram em quatro semanas consecutivas, à medida que o tratamento das tilápias avançava.
“Ao longo das quatro semanas, a gente observou nas tilápias que receberam a dose intermediária de canabidiol uma clara redução nas vezes que os machos atacavam o vidro do aquário ao perceber seu reflexo no espelho”, revela Bruno. “Tratadas com canabidiol, as tilápias ficaram menos estressadas e pararam de atacar o próprio reflexo no espelho”.

AFERIÇÃO DE BEM-ESTAR
No experimento de estresse não-social, a aferição do estresse dos peixes foi analisada a partir de seu confinamento. Por 30 minutos, cada peixe foi confinado num recipiente com apenas 10% do volume do aquário — algo ainda muito distante daquilo experimentado pelas tilápias nos tanques de engorda.
Para aferir o nível de estresse, Bruno recorreu a indicadores comportamentais indiretos, como o batimento opercular, ou seja, aquele movimento de abrir e fechar que os peixes fazem com suas brânquias. “Quando estão estressados, os peixes aumentam o batimento opercular para obter mais oxigênio. Basta contar quantas vezes cada peixe bate as brânquias”.
A contagem do batimento opercular foi realizada antes e depois de cada sessão de confinamento. “Também coletei sangue para aferir os níveis de cortisol antes e depois do confinamento”. O cortisol é um hormônio cuja função é ajudar o organismo a lidar com situações de estresse.
Como resultado do experimento, Bruno descobriu que a administração por um mês da dose intermediária e da máxima foram eficientes na redução do estresse dos peixes confinados.
A partir do resultado dos dois experimentos, conclui-se que tratar tilápias com canabidiol alivia o estresse e reduz a agressividade dos peixes. “Mas são resultados preliminares!”, Bruno apressa-se em salientar. “Ainda precisam ser repetidos de forma independente por outros grupos de pesquisa em condições reais de piscicultura. Tais grupos também precisam obter os mesmos resultados”.
CENÁRIO ALPINO
Ao longo de quase quatro anos, de 2018 a 2022, “todas a vezes que alguém vinha me perguntar o que eu estava pesquisando, as pessoas arregalavam os olhos. Era comum me perguntarem se os peixes tratados com canabidiol tinham larica”. Para quem não sabe, larica é de uma sensação de fome, muito característica quando passam os efeitos psíquicos da maconha”.
A originalidade da dissertação de mestrado de Bruno foi um passaporte para voos mais elevados. Ele vive hoje na Suíça, onde faz seu doutorado no Instituto de Ecologia e Evolução da Universidade de Berna, com bolsa do governo suíço.
“Em fevereiro, durante uma apresentação no maior congresso de estudantes de biologia da Suíça, no instante em que mencionei ter dado canabidiol para peixes, um sujeito que bebia água engasgou e quase cuspiu a água no chão. Ele depois veio se desculpar. Disse que ficou espantado com o que ouviu, que não esperava, e que a pesquisa era muito interessante. A galera adorou. A sala lotou. Disseram que era uma pesquisa muito diferente”.
É, o trabalho de Bruno é muito legal mesmo. Me abriu os olhos. Não sou vegetariano. Adoro peixe. Mas da próxima vez que olhar um filé de tilápia, acho que a sensação não será boa.
“O que a gente precisa é mudar a forma da aquicultura”, pontua Bruno.
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