O Brasil em chamas
Oito entre as dez maiores supererupções de que se tem conhecimento aconteceram no Brasil, há 134,5 milhões de anos
- Peter Moon
- 05/04/2023
- 13:50

Esqueça aquela história de que o Brasil é abençoado por Deus, porque aqui não tem terremotos nem vulcões. A verdade é que somos abençoados por viver 134,5 milhões de anos DEPOIS do inferno na Terra que era nosso país, palco de oito entre as dez maiores supererupções que se conhece.
Resolvi mergulhar a fundo nesta história diante da ótima recepção do post “Uma viagem (geológica) no tempo”. Como resultado, acabei por desfrutar de duas horas de prosa com o geólogo gaúcho Lucas Rossetti, da Faculdade de Geociências da Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá, que estuda o assunto há 15 anos.
Foi muito legal! Descobri um monte de coisas que não sabia. Lucas me contou, passo-a-passo, sobre alguns eventos fundamentais para história geológica do Brasil. Hoje, contarei o que ele me disse sobre o primeiro evento: as supererupções.
Há 134,5 milhões de anos, um conjunto de supererupções cobriu com mais de dois quilômetros verticais de basalto a grande maioria da região Sul e do estado de São Paulo.
A pré-condição para aquele cataclisma foi a formação, logo abaixo da crosta terrestre, de uma pluma de magma, ou seja, de um volume incomensurável de rocha derretida vinda das profundezas do planeta. A irresistível força ascensional da pluma acabou por romper a crosta terrestre, abrindo centenas de fissuras colossais que permitiram ao magma sob intensa pressão vazar na superfície, aflorando como lava que solidificou e virou basalto.
Para os continentes da América do Sul e da África, que haviam se unido há 750 milhões de anos, o momento da separação havia chegado

MARES DE LAVA
A imagem mais comum que se tem de uma erupção remete à visão de vulcões que, repentinamente, despertam de seu adormecimento para explodir de forma violenta, vomitando lava, cinza e gases durante um breve período. Passada a erupção, o vulcão volta a adormecer, até despertar em nova explosão daí há cem, mil ou cem mil anos.
Inundações basálticas são fundamentalmente diferentes. Para começar, não há vulcões nem crateras. A lava que extravasa pelas fissuras na crosta terrestre não se acumula localmente nem constrói os edifícios basálticos verticais que chamamos vulcões. Nada disso.
No caso das inundações basálticas, a lava extravasa por imensas fissuras na crosta terrestre, em volumes prodigiosos, de forma contínua e devastadora. Cada erupção pode durar milhares de anos. Uma única fissura serve de gargalo para dezenas de erupções. E a lava de cada uma delas não se acumula num único ponto, mas se espalha por ampla região. Assim, a lava de cada erupção vai sendo depositada acima da lava das erupções anteriores, num processo que pode se repetir dezenas de vezes, num padrão que lembra as camadas de uma lasanha.
À exceção das fissuras localizadas no solo oceânico, como a cordilheira mesoatlântica que serpenteia por 16 mil quilômetros no centro do Atlântico, praticamente não existem exemplos de fissuras continentais que se assemelhem, mesmo que remotamente, às imensas fissuras que rasgaram o sul do Brasil no período Cretáceo inferior.

200 KILAUEAS
O único exemplo contemporâneo capaz de fornecer um vislumbre, mesmo que fugaz, das grandes fissuras magmáticas do passado é o Kilauea, no Havaí. O Kilauea é considerado vulcão mais ativo do planeta. Ele se encontra em erupção há 40 anos, desde 1983. Sua lava não se acumula verticalmente. Escorre num fluxo contínuo rumo ao oceano Pacífico. Ao fazê-lo, vai alargando em área a maior ilha do Havaí.
“Imagine mais de 200 Kilaueas derramando lava ininterruptamente ao longo de milhares de anos. Assim devem ter sido os derramamentos basálticos no sul do Brasil há 134,5 milhões de anos”, explica Lucas. “Cada uma daquelas supererupções mergulhou em lava vastas regiões. As oito principais (foram dezenas) então entre os maiores eventos eruptivos que se conhece atualmente”.
Tal ranking foi obtido a partir da estimativa do volume de lava derramado pelo conjunto das dezenas de erupções de uma única supererupção. Ou melhor, de um único derramamento basáltico. Segundo Lucas, como nunca existiram vulcões nem crateras, desconhece-se a localização exata das antigas fissuras, hoje enterradas sob quilômetros de basalto.
“Apesar disso, conseguimos identificar a existência de diversas supererupções ao estudar a composição química do basalto. O basalto derramado pelas dezenas de erupções de uma mesma fissura tem uma assinatura química particular”, diz Lucas. A partir do estudo da composição química da lava, os pesquisadores conseguem determinar os limites de ocorrência de cada tipo de basalto. Isto permite estimar a área total de cada derramamento, assim como o volume total de lava derramada em cada supererupção.
Eis os resultados.

GUARAPUAVA-TAMARANA-SARUSAS
A maior supererupção brasileira é a Guarapuava-Tamarana-Sarusas. O nome é referência às cidades onde se encontram os limites do derramamento basáltico. As duas primeiras cidades, as paranaenses Guarapuava e Tamarana, distam 120 km uma da outra. Já Sarusas fica no litoral da Namíbia, a 6.500 km de distância (veja o mapa abaixo). Há 134,5 milhões de anos, no entanto, ficava a cerca de 300 km de Guarapuava.
Estima-se que, através das fissuras da supererupção Guarapuava-Tamarana-Sarusas, tenham vazado absurdos 8.587 km³ de lava. Isto equivale ao volume de uma esfera com 25,4 km de altura. Ou o mesmo volume de 3,3 milhões de Grandes Pirâmides de Quéops. Ou ainda duas vezes o volume do Grand Canyon, nos Estados Unidos (usando a calculadora online Sixus). É uma barbaridade…
Não bastasse, fique ainda sabendo que o volume estimado de 8.587 km³ para o derramamento basáltico Guarapuava-Tamarana-Sarusas desconsidera a existência de depósitos de cinzas vulcânicas, ainda não detectados. Mas o volume da erupção pode ser duas a três vezes superior, caso quaisquer depósitos de cinzas sejam um dia encontrados.

AS OUTRAS SETE
Guarapuava-Tamarana-Sarusas é a maior das supererupções brasileiras e a segunda maior do mundo. Só perde a primeira colocação para os 9.300 km³ de basalto derramado há 64,8 milhões de anos, na erupção Mahabaleshwar–Rajahmundry Traps, na índia.
Eis as demais supererupções brasileiras, segundo o ranking mundial:
3ª — Santa Maria/Fria, no Rio Grande do Sul, com derramamento de 7.808 km³ de lava
4ª — Guarapuava / Ventura, entre o Paraná e a Namíbia, com 7.571 km³
5ª — PAV B-Caxias do Sul / Springbok, entre RS e Namíbia, com 6.866 km³
6ª — PAV F-Caxias do Sul/ Grootberg, entre RS e Namíbia, com 5.651 km³
7ª — PAV A-Jacui/Goboboseb II, entre RS e Namíbia, com 4.348 km³
8.ª — Canion McCoy, nos Estados Unidos, com 4.278 km³
9ª — Ourinhos/Khoraseb, entre São Paulo e Namíbia, com 3.939 km³
10ª — PAV G-Anita Garibaldi/Beacon, entre RS e Namíbia, com 3.452 km³
Você deve ter notado que os derramamentos basálticos de todas as supererupções brasileiras são também encontrados do outro lado do Atlântico, em território namíbio. O curioso é que 90% do volume total dos derramamentos está no Brasil. A Namíbia reúne menos de 10%. Daí poder se dizer sem medo que oito das dez maiores supererupções são, essencialmente, brasileiras.

O GRUPO SERRA GERAL
“Sou de Caxias do Sul. Nasci em cima do basalto!”, observa Lucas com uma pitada de humor. É verdade. A Serra Gaúcha, onde fica Caxias do Sul e se produz o melhor vinho do país, é uma subdivisão da Serra Geral, assim como são a Serra do Rio do Rastro e a Serra Catarinense.
A Serra Geral é a formação rochosa que resultou dos derramamentos basálticos ocorridos há 134,5 milhões de anos.
Desde os anos 1980, aquela formação era conhecida pelos cientistas como Província Magmática Paraná-Etendeka. No entanto, em 2018, ela foi separada em duas: o Grupo Serra Geral, no Brasil, e o Grupo Etendeka, na Namíbia. Lucas Rossetti teve participação importante nesta alteração, por meio do artigo publicado no Journal of Volcanology and Geothermal Research.
Hoje, os basaltos da Serra Geral cobrem uma área de 1,2 milhão de km², distribuídos entre os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul, e parte do Mato Grosso e Minas Gerais, mas também se estendendo a porções do Uruguai, Argentina e Paraguai.
Mas no passado o Grupo Serra Geral era muito maior. Segundo Lucas, “1,2 milhão de km² é o que restou, é aquilo que chegou aos nossos dias após 134,5 milhões de anos de erosão. A gente estima que a área original do Grupo Serra Geral poderia ser 2,5 milhões de km²”.

DESERTO EM CHAMAS
Há 134,5 milhões de anos, todo o sul do Brasil era coberto por um vasto deserto de dunas que lá existia desde tempos jurássicos. Era o deserto Botucatu. Quando começaram os derramamentos basálticos, as fissuras que rasgaram a crosta terrestre para permitir a passagem da lava surgiram no meio do antigo deserto, que desapareceu. Foi totalmente coberto por lava.
Hoje, mesmo após milhões de anos de erosão, a espessura do manto basáltico continua espetacular. Em Lagoa Vermelha (RS), por exemplo, o basalto se estende até 1.250 metros de profundidade. A maior espessura conhecida fica em Mirante do Paranapanema (SP). No local, cavou-se um poço que atravessou 1.750 metros verticais de basalto até atingir a camada de arenito abaixo do basalto. É o que restou do deserto Botucatu. O resultado do cozimento e da compressão de suas dunas pelo calor de 1.200 °C e o peso de milhões de toneladas de lava.
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