- Peter Moon
- 07/02/2023
- 08:44

SOMOS TODOS CINODONTES
Conheça o nosso longínquo ancestral que viveu no RS há 230 milhões de anos
Num momento em que avançam ridículos (para não dizer tenebrosos) pensamentos terraplanistas, nunca é demais salientar o parentesco que dividimos com os demais seres vivos. Nós todos, os 8 bilhões de seres humanos, somos Homo sapiens, espécie que está no planeta há apenas 250 mil anos.
Também somos primatas. De acordo com o relógio molecular, partilhamos um ancestral comum com nossos primos mais próximos, os símios, grupo que inclui chimpanzés, gorilas, saguis e toda a macacada, e também nossos primos mais distantes, os lêmures de Madagascar e os tarsius do sudeste asiático. Segundo recente filogenia dos mamíferos publicada na revista Nature, o ancestral comum a todos os primatas viveu há 64 milhões de anos, ou seja, logo após a extinção dos dinossauros.
Além de primatas, somos placentários, o grupo de mamíferos que desenvolve seus embriões em placentas, e que inclui nossos parentes gatos, cachorros, baleias, morcegos, entre tantos outros. O ancestral comum a todos os placentários viveu entre 83 e 77 milhões de anos atrás, no período Cretáceo. Conviveu com dinossauros.
Antes disso, há os marsupiais, grupo dos cangurus, coalas e gambás, mamíferos que criam seus filhotes em bolsas (ou marsúpios). Dividimos com eles um ancestral que viveu no período Jurássico, há no máximo 166 milhões de anos. Ainda anterior é nosso elo familiar com os monotremados, mamíferos que botam ovos, dos quais sobrevivem hoje apenas ornitorrincos e equidnas. O ancestral comum a todos os mamíferos viventes e extintos, monotremados, marsupiais e placentários, habitou a Terra há 200 milhões de anos, no final do período Triássico.
Mas, e antes disso? Toda essa introdução serviu para fazer o leitor atento chegar a se perguntar o que havia antes dos mamíferos? A qual grupo extinto pertencemos? Somos todos cinodontes, animais que evoluíram há 260 milhões de anos e que sobrevivem até hoje, sob a forma de humanos, macacos, baleias, morcegos, cangurus, ornitorrincos, e todas as mais de 5.400 espécies de mamíferos viventes.
Como eram os cinodontes dos tempos triássicos, muito antes do surgimento de monotremados, marsupiais e placentários? Há dezenas de exemplos de fósseis de cinodontes triássicos achados em todo o mundo. No Brasil, todos são do Rio Grande do Sul. Já foram descritas diversas espécies. Mas em praticamente nenhuma delas os paleontólogos tiveram a sorte grande de encontrar um crânio completo.

ANTEPASSADO DIMINUTO
Este é o caso do Prozostrodon brasiliensis, um cinodonte de 230 milhões de anos, cuja cabecinha foi revelada em detalhes em janeiro, num artigo na revista Journal of Mammal Evolution. A publicação decorre do trabalho de doutorado da paleontóloga Micheli Stefanello, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Participaram ainda paleontólogos da UFSM e do Museo Argentino de Ciencias Naturales “Bernardino Rivadavia”, de Buenos Aires.
O crânio do Prozostrodon foi descoberto totalmente por acaso. A história começa na cidadezinha de São João de Polêsine, no centro do Rio Grande do Sul, onde em 2014 paleontólogos da UFSM descobriram os restos de um dinossauro. Para estudá-lo, os pesquisadores precisaram extrair e levar para o laboratório um bloco de rocha de mais de uma tonelada.
Ao longo do minucioso trabalho de retirada do fóssil da rocha, além do esqueleto quase completo do Gnathovorax cabreirai, em 2017 os cientistas foram presenteados com o crânio completo do Prozostrodon – além de restos de rincosauros, um réptil herbívoro seu contemporâneo.
O crânio completo é o quarto espécime de Prozostrodon conhecido. O primeiro fóssil foi coletado na década de 1980, em Santa Maria (RS), sendo representado pela metade anterior do crânio, mandíbulas com dentição e partes do esqueleto. Originalmente, o material foi nomeado de Thrinaxodon brasiliensis, em 1987. Mais tarde, em 2001, novo estudo reavaliou o fóssil e sugeriu que pertencesse a um gênero diferente, agora chamando Prozostrodon brasiliensis.
Prozostrodon era um animalzinho com pouco mais de um quilo e cerca de 40 cm. Em vida, ele poderia ser imaginado como um gambazinho. Era um dos menores cinodontes de seu tempo, já que no Triássico eles podiam atingir as proporções de um cachorro bem grande. Devido à sua dentição, Prozostrodon teria uma dieta alimentar predominantemente carnívora ou insetívora, alimentando-se de insetos e de animais menores.
De acordo com Leonardo Kerber, o paleontólogo da UFSM e um dos responsáveis pela pesquisa, os cinodontes do Triássico eram animais que apresentavam em seu esqueleto algumas características tipicamente reptilianas (sem, contudo, serem répteis, que isso fique claro!) conjugadas a outros traços que seriam herdados pelos futuros mamíferos.

A VIDA NO PANGEIA
A importância do novo crânio não reside apenas e tão somente no fato de se tratar do único crânio completo de Prozostrodon. Muito mais além, trata-se de um dos crânios de cinodontes mais completos já encontrados. “O estudo dos fósseis desses animais é importante, por ser neles que estão as primeiras aparições de características que hoje estão presentes exclusivamente nos mamíferos”, explica Kerber.
Baseado no estudo de seus fósseis, os especialistas conseguem bater o martelo sobre pequenas características morfológicas do esqueleto que foram transmitidas dos cinodontes primitivos a nós, cinodontes modernos. É possível inferir, no entanto, algumas peculiaridades fisiológicas dos cinodontes mais derivados que foram preservadas entre os mamíferos. Em algum momento do Mesozoico, alguns cinodontes se tornaram animais de sangue quente, possivelmente passaram a apresentar o corpo coberto por pelos e produzir leite. Embora as estratégias reprodutivas dos cinodontes sejam ainda desconhecidas, possivelmente tratava-se de formas que botavam ovos — característica esta que marsupiais e placentários perderam.
Naquele tempo todos os continentes encontravam-se suturados num único supercontinente: Pangeia. América do Sul e África estavam colados, e as terras que hoje formam o Brasil se encontravam na beira de um imenso deserto, o maior que existiu, e que ocupava o interior de Pangeia.
Durante o Triássico, o Rio Grande do Sul oscilou entre períodos desérticos e períodos nem tão secos, que por vezes atingiriam níveis de umidade compatíveis com uma caatinga ou um cerrado. Mas que definitivamente não eram úmidos. Ao longo de quase todo o Triássico a água foi um bem escasso.
Sendo assim, aqueles grupos de animais que melhor se adaptaram a sobreviver num regime de escassez de água foram os que ganharam a corrida da evolução. Este foi o caso dos cinodontes, assim como dos arcossauros, os ancestrais de jacarés e crocodilos, e também de outro grupo que surgiu no registro fóssil exatamente pela mesma época do Prozostrodon: os dinossauros!
Os dinossauros mais antigos que se conhece são argentinos e brasileiros. Apareceram pela primeira vez no planeta em meados do Triássico, há 230 milhões de anos. Nosso ancestral Prozostrodon testemunhou seu surgimento.
O mais antigo dino brasileiro é o estauricossauro, um predador bípede do tamanho de um lobo. Dada a diferença entre os portes do prozostrodon e do estauricossauro, não é difícil imaginar quem predava quem. E quais seriam as consequências disto.
Se Prozostrodon e demais cinodontes viviam à luz do dia, este não foi um hábito que legaram aos mamíferos. Desde o momento em que surgiram os primeiros mamíferos, há 200 milhões de anos, até a extinção dos dinossauros, há 66 milhões de anos, acredita-se que a vida dos mamíferos foi marcada pela urgência de escapar dos dinossauros.
A saída foi adotar hábitos noturnos. Assim, nossos ancestrais passaram a viver nas sombras, aventurando-se para fora de suas tocas apenas à noite, quando podiam caçar e se alimentar, reduzindo as chances de virar comida de dinossauro.
Ao longo de quase 150 milhões de anos, os mamíferos mesozoicos se mantiveram pequenos e esquivos. Só puderam retornar à luz do dia, ganhar porte e liberdade, com o final do reinado de seus algozes, há 66 milhões de anos. Ainda bem, pois de outra forma nós, cinodontes contemporâneos, jamais teríamos tido a chance de ver a luz do dia.
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