A evolução dos peixinhos dos recifes de coral
Biólogos brasileiros que pesquisam a ecologia dos recifes de coral na Austrália emplacaram em maio a capa da revista Nature, em junho/23
- Peter Moon
- 29/06/2023
- 04:03
“Se você já teve a sorte de visitar um recife de coral saudável, tenho certeza de que concordará que se trata de uma cena notável. A fascinante diversidade e complexidade dos sistemas de recifes de corais se assemelha a uma cidade movimentada, com os peixes sendo os habitantes mais fascinantes”, escreveu o biólogo mineiro Alexandre Siqueira, da Universidade James Cook, em Townsville, Austrália, num artigo para o site Ecology & Evolution, do grupo Nature.
Eu já tive a oportunidade de mergulhar nos recifes de coral diante da cidade de Cairns, 200 km ao norte de Townsville, e o maravilhoso cenário submarino que presenciei trago indelével em minha memória. Daí meu interesse em conversar com Alexandre e com seu colega também mineiro, Renato Morais, quando soube que os estes biólogos brasileiros haviam publicado em revistas de altíssimo impacto uma série de estudos sobre a evolução e a biogeografia dos peixes dos recifes de coral. O trabalho culminou com um artigo publicado na Nature: “A evolução dos peixes de crescimento rápido nos recifes de coral”. Sua recepção foi tão boa entre os editores da revista escolheram o artigo para ilustrar a capa da edição de 8 de junho.
Alexandre se formou na Universidade Federal de Minas Gerais, e Renato na Universidade Federal de Santa Catarina, de onde partiram com destino à Austrália, para fazerem seus doutorados no laboratório do professor David Bellwood, uma das maiores autoridades mundiais no estudo dos recifes de cora. Alexandre continua em Townsville, agora num pós-doc. Já Morais mudou-se para a França, onde faz pós-doc na Universidade de Paris Ciências e Letras. Tive a oportunidade de conversar com os dois, para eles poderem me contar toda a história desta série de estudos.
“Primeiramente, uma explicação”, diz Alexandre. “Nem todos os recifes são construídos pelo esqueleto dos animais chamados corais. No Brasil há muitos recifes rochosos e lajes submarinas onde se concentra a vida marinha. Mas os únicos recifes de coral dos mares brasileiros são aqueles em torno do arquipélago de Abrolhos”.
Os maiores recifes de coral hoje existentes ficam na Austrália, na costa da península de Yucatán, e espalhados entre a Flórida e a ilha de Cuba. A Grande Barreira de Coral australiana é, de longe, a maior de todas, com 2.600 km de extensão e uma área de 350 mil km², equivalente à do estado do Mato Grosso do Sul.
“As seis mil espécies de peixes que habitam os recifes de corais são encontradas em uma infinidade de cores, formas e tamanhos. Sua diversidade taxonômica e ecológica, no entanto, esconde uma fascinante história evolutiva que só pode ser revelada através do exame de fósseis e filogenias”, observa Alexandre.
Segundo ele, “os primeiros fósseis associados às famílias de peixes de recife existentes têm cerca de 50 milhões de anos e são importantes porque nos dizem muito sobre a diversificação inicial de muitos grupos”. Ainda assim, a maioria deles foi encontrada na Europa, bem longe do Indo-Pacífico, onde hoje se encontra a maioria das espécies de peixes que habitam recifes de coral. Outro problema é que os fósseis de peixes recifais são relativamente raros no passado geológico recente, os últimos 20 milhões de anos, deixando muitas lacunas na história da evolução dos peixes recifais.
PEIXINHOS MINÚSCULOS
Tais lacunas começam a ser preenchidas, a partir da observação da evolução das taxas de crescimento em peixes de recifes de corais. No artigo na Nature, Alexandre, Renato e colegas explicam que a composição atual das espécies de peixes que vivem nos recifes de coral, cuja imensa maioria são espécies pequenas ou minúsculas (apesar dos vistosos tubarões), foi um processo que aconteceu em dois tempos.
A evolução dos recifes de coral modernos data de cerca de 30 milhões de anos atrás. Mas o processo de crescimento dos peixinhos que viriam a habitar os recifes é muito anterior. Uma das descobertas dos pesquisadores é que os peixes recifais desenvolveram taxas de crescimento mais rápidas nos oceanos quentes do passado, entre o final do período Paleoceno e início do Eoceno, entre 60 a 40 milhões de anos atrás.
“Esses peixes pequenos e de crescimento rápido simbolizam os recifes de corais produtivos de hoje. Este padrão de crescimento rápido, que caminhou associado à redução de tamanho corporal de inúmeras espécies, se deu numa época em que as temperaturas globais na Terra eram mais altas do que hoje”, explica Renato Morais.
“Tais temperaturas geologicamente altas parecem ter empurrado os limites dos menores peixes dos recifes para um estilo de vida rápido e jovem, com algumas das taxas de crescimento mais rápidas de todo o reino animal”.
David Bellwood fornece um exemplo: “O góbio-pigmeu (Pandaka pygmaea) tem o tempo de vida mais curto de qualquer vertebrado do mundo. Ele cresce até o tamanho adulto em pouco mais de um mês e vive menos de oito semanas”.
Esses peixes de crescimento rápido são extremamente abundantes nos recifes de corais, contribuindo para a alta produtividade desses sistemas. Em outras palavras, os recifes de coral têm enorme produtividade porque na base da sua cadeia alimentar extremamente biodiversa existe uma abundância de peixinhos de crescimento acelerado e vida breve. São muito pequenos, porém tão abundantes, crescem e se reproduzem tão rápido, que conseguem sustentar com facilidade uma alta biomassa de predadores.
MARES MAIS FRIOS
Mas os oceanos de águas globalmente cálidas sofreram um baque há cerca de 30 milhões de anos, quando a Antártida, até então conectada umbilicalmente à América do Sul via Península Antártica, rompeu amarras e singrou para o fim do mundo. Ao fazê-lo, formou-se a Corrente Circumpolar Antártica, uma corrente de águas marinhas muito frias que, como o próprio nome diz, circunda a Antártida. A formação desta corrente teve um efeito global, esfriando as águas, e por tabela, o clima da Terra.
“Foi em meio a estas novas circunstâncias que, nas águas tropicais, começaram a ser formados os recifes de coral como hoje os conhecemos. Eles provavelmente forneceram a cobertura necessária para a sobrevivência de muitos peixes de corpo pequeno e crescimento rápido”, explica Alexandre Siqueira.
“Portanto, as temperaturas geologicamente quentes parecem ter levado à evolução de taxas de crescimento mais rápidas, enquanto o subsequente aumento dos recifes permitiu a manutenção desses estilos de vida mais rápidos”.
Essas descobertas de eventos perdidos no passado distante têm repercussões diretas nos nossos dias. Nosso estudo sugere que águas mais quentes podem levar à adaptação de peixes menores e de crescimento mais rápido. Isso significa que o atual aquecimento das temperaturas globais pode impactar diretamente as estratégias de vida dos peixes atuais”, disseram os autores.
O QUE É UM PEIXE RECIFAL?
Noutro trabalho publicado em maio na revista Ecology Letters, Alexandre Siqueira visou entender quais peixes são inerentes aos recifes de coral. Aqueles cuja sobrevivência está diretamente ligada à existência de recifes de coral. Não se trata de uma questão trivial.
“Até recentemente, ninguém havia verificado quantas espécies de peixes entre as mais de 6 mil que ocorrem nos recifes de coral são associados diretamente aos corais. Ou seja, não estão somente de passagem, mas dependem do ambiente de coral para sobreviver”, explica Alexandre.
Para determinar quantas espécies de peixes dependem exclusivamente dos corais, os pesquisadores trabalharam com 14 famílias, com aproximadamente 3.700 espécies, encontradas em alta abundância em recifes de corais, independentemente de sua localização biogeográfica. Entre elas há, por exemplo, as famílias dos peixes-cirurgião, dos carapaus, dos peixes-anjo, das donzelinhas, dos bodiões, peixes-borboleta e xaréus.
“Todas as espécies presentes em nossa lista foram classificadas de acordo com três níveis de associação com corais escleractíneos: não associados; moderadamente associado e fortemente associado”.
Não é o caso de detalhar aqui todos os muitos parâmetros que foram usados para triar, entre aquelas 3.700 espécies, quais ocorrem apenas e tão somente nos recifes de coral. Mas, para dar um exemplo, veja o caso da família dos pomacentrídeos, com 365 espécies, entre elas as donzelinhas e os peixes-palhaço (como Nemo, aquele do desenho animado).
Enquanto algumas donzelinhas dependem estritamente do microábitat fornecido por corais ramificados, este não é o caso dos peixes-palhaço, que vivem nas anêmonas, animais que podem habitar os corais, mas não são corais. Logo, no escrutínio para verificar quais peixes estão inerentemente associados aos recifes de coral, donzelinhas estão dentro e peixes-palhaço estão fora. Ou seja, na família dos pomacentrídeos, há espécies que dependem exclusivamente do coral, e outras que não. O mesmo padrão foi verificado em maior ou menor grau entre todas as 14 famílias de peixes analisadas.
“Depois de compilar um grande conjunto de dados sobre a prevalência de interações peixe-coral, descobrimos que apenas uma minoria de espécies de peixes, cerca de 180 espécies, ou 5% do total, se associa fortemente a corais vivos”, explica Alexandre.