- Peter Moon
- 31/01/2023
- 06:32

A LUTA PARA SALVAR OS PEIXES-BOI ÓRFÃOS
Pesquisadores da UFPA lutam para salvar peixes-boi órfãos da Amazônia e reintroduzi-los à natureza
Para tanto, é necessário determinar a identidade de cada bichinho. Eles podem ser da espécie amazônica, podem ser da espécie marinha, ou até mesmo híbridos, e estéreis
O peixe-boi amazônico é um animal dócil e adorável. Quem quer que tenha tido a oportunidade de conhecer ao vivo um de seus filhotes sabe como são lindos e indefesos. Eles passam muito tempo sob a proteção dos pais enquanto desmamam, e mais tempo ainda até crescerem o suficiente para sobreviver por conta própria nos rios da Amazônia.
O peixe-boi passa a vida se alimentando de plantas submersas. Chega a atingir 2,5 metros e pesar mais de 300 quilos. São doces gigantes que não oferecem risco a ninguém. Por isso mesmo são tão fáceis de matar, o que geralmente acontece com um tiro na cabeça disparado quando o animal sobe à superfície para respirar.
O peixe-boi da Amazônia é uma das espécies mais ameaçadas de extinção no Brasil. As principais ameaças são a caça ilegal, a destruição do seu habitat e a liberação de mercúrio nos rios.
Por isso mesmo são tão importantes todas as iniciativas de conservação da espécie. O Zoológico da Universidade da Amazônia (ZOOUNAMA) e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), por exemplo, acolhem todos os anos dezenas de filhotes resgatados após a morte dos pais. Os órfãos são enviados de toda a Amazônia para centros de recuperação, onde são tratados e preparados para a reintrodução à natureza.
Antes de reintroduzir os animais à vida selvagem, é preciso se certificar de que o órfão resgatado é um peixe-boi amazônico (Trichechus inunguis), ou é um peixe-boi marinho (ou manatim, Trichechus manatus) ou até mesmo um híbrido, resultado da cruza das duas espécies. “Reintroduzir peixes-bois marinhos ou híbridos poderia promover seu cruzamento com a espécie amazônica, dando origem a novos híbridos, muitas vezes estéreis”, explica Renata Coelho Rodrigues Noronha, pesquisadora da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Segundo Renata, a distinção visual entre as duas espécies nem sempre é possível. Os indivíduos marinhos são maiores, mais claros, com unhas nas nadadeiras. Já os exemplares amazônicos são menores, mais escuros, não têm unhas, e têm uma faixa branca na barriga. “Os híbridos são raros, mas quando aparecem trazem características misturadas. Podem ter unhas como o peixe-boi marinho e a faixa branca dos amazônicos. Ou podem ser claros como os marinhos e não ter unhas, como os amazônicos.”

ENIGMA CROMOSSÔMICO
Como determinar a espécie dos peixes-boi quando isso não é possível visualmente? É aí que entra o trabalho de Renata. Sua especialidade é a citogenética, o ramo da genética que estuda a estrutura e a função da célula, especialmente os cromossomos.
Sempre que há necessidade de determinar a espécie de um dos órfãos, seu sangue é coletado onde quer que o bicho esteja e enviado ao laboratório de Renata em Belém. As amostras vêm com o nome de cada animal, como Poque e Vítor, órfãos híbridos achados em Macapá (AP).
Com o sangue coletado dos peixes-boi órfãos, Renata investiga seu cariótipo, nome dado ao conjunto de cromossomos de uma dada espécie que apresentam forma, tamanho e número característicos.
“O peixe-boi amazônico tem 56 cromossomos. O manatim tem 48. Mas Poque e Vitor têm 50 cromossomos. São híbridos de segunda geração, ou seja, um de seus pais já era híbrido”, explica a pesquisadora, que publicou a descoberta na revista Genes.
Renata e sua equipe já investigaram dezenas de amostras de sangue de peixes-boi órfãos. É um trabalho meticuloso e caro, que exige equipamentos sofisticados e reagentes importados. Mas que, para além da determinação da espécie de cada bichinho, vêm revelando fatos surpreendentes.

A ODISSEIA DOS TRICHECHUS
Os peixes-boi e seus primos dugongos, ou vacas-marinhas, habitantes das costas da Austrália e Madagascar, pertencem todos à ordem Sirenia. Tal nome deriva da palavra sereia. Ao avistarem peixes-bois marinhos pela primeira vez no Novo Mundo, os navegadores ibéricos do século 16 os confundiram com as criaturas mitológicas com cabeça e corpo de mulher e a cauda de peixe, que atraíam os marujos com seu canto enfeitiçante apenas para devorá-los.
Na realidade, os sirenídeos são mamíferos aquáticos que, há 65 milhões de anos, compartilharam um ancestral comum com os elefantes. Isso mesmo: peixes-bois são primos distantes da linhagem dos paquidermes!
Dados moleculares indicam ainda que os primeiros sirenídeos viveram há 60 milhões de anos, e que o ancestral comum de todos os peixes-boi (mas não dos dugongos) estabeleceu a sua linhagem há 56 milhões de anos, na África. Naquela época, no início do período Eoceno, a configuração dos continentes era diversa. O Atlântico Sul era uma língua d’água de menos de mil quilômetros a separar a África da América do Sul, um terço da travessia mínima atual, sendo de 2.800 km (entre o Nordeste e Guiné-Bissau).
Ora, se os primeiros peixes-boi eram africanos, os ancestrais dos peixes-boi do Novo Mundo tiveram necessariamente que cruzar aqueles mil quilômetros de oceano para assim colonizar nosso litoral. Como fizeram isso? Teriam pulado de ilha em ilha através de um colar de ilhas hoje tragadas pelo oceano?
É provável. Talvez jamais saibamos. Mas o fato é que uma vez nas águas do Novo Mundo, os peixes-boi colonizaram uma vasta região, que atualmente se estende desde o sul dos Estados Unidos, passando pelas águas do Caribe, Antilhas e o litoral norte da América do Sul, pelas bacias dos rios Magdalena na Colômbia e Orinoco na Venezuela, cruzando as Guianas e se espalhando desde o Amapá até o litoral da Bahia.
De acordo com dados moleculares, os peixes-boi amazônicos são o elo mais recente desta longa linhagem. Eles descendem de antigos manatins que se aventuraram pelos rios da Amazônia no período Mioceno, entre 20 e 12 milhões de anos atrás, quando o nível dos mares era mais elevado. Quando o mar recuou, os manatins, assim como botos oceânicos e raias marinhas acabaram aprisionados no interior do continente, e tiveram que se adaptar a uma vida em água-doce. Daí surgiram o boto-cor-de-rosa, as raias-de-água-doce, e o nosso peixe-boi.

SAGA CITOGENÉTICA
Mas eis que surgem novidades! Num novo artigo publicado em janeiro na revista BMC Genomics, Renata e sua equipe dão conta que a análise realizada com o sangue de peixes-boi revelou que, do ponto de vista citogenético, os cromossomos do peixe-boi amazônico são mais assemelhados aos cromossomos dos primeiros ancestrais dos sirênios (que têm origem africana), do que aos cromossomos do manatim.
Em outras palavras, há 20 milhões de anos, quando antigos peixes-boi marinhos adentraram as águas da bacia amazônica, seus cromossomos ainda eram semelhantes aos do primo africano, do qual haviam perdido contato muitos milhões de anos antes (mais especificamente, há cerca de 56 milhões de anos). Este padrão cromossômico mais próximo da espécie africana acabou melhor conservado entre os peixes-boi amazônicos.
Mas tal conservação não se deu entre os manatins, cujo padrão cromossômico mudou muito, distanciando-se do observado na espécie amazônica. Como qualquer coisa no mecanismo da evolução, a razão para a alteração cromossômica dos manatins se deve a mutações favorecidas por pressões ambientais, que no caso dos manatins ocorreram nos oceanos nos últimos 20 milhões de anos.
Não sabemos quais teriam sido essas pressões, mas podem ter incluído o surgimento de novos predadores, uma alteração na oferta de alimento ou ainda mudanças climáticas, por exemplo. Para sobreviver às novas condições, os manatins tiveram que se adaptar, e as mutações genéticas que possibilitaram tais adaptações ficaram registradas em seu padrão cromossômico diferenciado.
Como a espécie amazônica não sofreu as mesmas pressões, seus cromossomos permaneceram mais conservados.
E para que serve saber tudo isso?
Ora, entre outras coisas, para permitir a Renata descobrir que os peixes-bois órfãos Poque e Vitor são híbridos. Caso não se conhecesse o padrão cromossômico de peixes-boi amazônicos e manatins, tal diferenciação seria muito mais complicado, caro e demorado, envolvendo a investigação de outros marcadores genéticos de cada animal.
Um próximo objetivo da pesquisa é conseguir material genético dos peixes-boi africanos, para poder comparar seus padrões cromossômicos com os das espécies americanas. Renata já sabe que existe material coletado na Nigéria, e espera obtê-lo em breve.
MATANÇA SECULAR
No passado, o peixe-boi era encontrado por toda a bacia amazônica, do Pará ao Peru, da Colômbia e Venezuela até a Bolívia, Acre e Rondônia. Hoje, eles estão rareando.
Segundo o biólogo Fábio Olmos, os peixes-boi-amazônicos foram caçados em escala industrial desde o Brasil Colônia e há registros de sua carne e óleo sendo exportados do então Grão-Pará no século 17. Estima-se que entre mil e dois mil animais foram mortos por ano entre 1780 e 1925. O número cresceu tremendamente após 1935, com a industrialização do Brasil e o surgimento da demanda por correias de motores e outros usos para couros grossos e resistentes. A armadura do peixe-boi foi sua desgraça.
“Entre 4 e 10 mil peixes-bois-amazônicos foram mortos pelo seu couro e carne entre 1935 e o início da década de 1960, quando o colapso das populações e o uso de materiais sintéticos, além da lei de proteção à fauna de 1967, reduziram a matança — que hoje continua, apesar de tudo.”
De acordo com o Fundo Mundial Para a Natureza (WFF), o peixe-boi é uma das espécies mais ameaçadas entre os grandes mamíferos brasileiros. A capacidade de recuperação da população de peixes-bois é limitada devido ao seu longo ciclo reprodutivo. Cada fêmea de peixe-boi gera apenas um filhote de cada vez, com raros casos de gêmeos. Cada gestação dura 13 longos meses.
Depois que o filhote nasce, a mãe o amamenta por períodos de em média dois anos. A mamãe peixe-boi é muito zelosa: é ela quem ensina o bebê a nadar, a escolher seus alimentos e a subir à superfície para respirar. Mas todo esse cuidado significa que uma fêmea procria apenas a cada quatro anos.
Quando a mãe é morta, dificilmente seus filhotes sobrevivem. É o que acontece com milhares de filhotes todos os anos. Poque e Vitor são os que tiveram sorte.
Gostou de ler sobre os peixes-boi da Amazônia? Quer saber mais sobre a vida dos mamíferos aquáticos?
Então leia estas reportagens:
Uma amizade imemorial entre botos e humanos — Tudo indica que as duas espécies colaboram na pesca da tainha nas lagunas de Santa Catarina há séculos
Por que as baleias são gigantes — Cientistas da Unicamp descobrem os genes responsáveis pela evolução do gigantismo das baleias
Era uma vez um boto — Qual é a importância dos cientistas determinarem quantas espécies de botos habitam os rios da Amazônia?
2 comentários em “A luta para salvar os peixes-boi órfãos”
Muito interessante! Não sabia que existia o peixe-boi de água salgada, nem da origem africana da espécie. Legal saber também que pesquisadores brasileiros ajudam a preservar a espécie. Viva a ciência brasileira!
É meu amigo, muito legal mesmo. Estou me divertindo fazendo este novo canal. Que bom que está gostando 🙂