- Peter Moon
- 13/04/2023
- 12:47

ESPERANÇA DE VIDA EM MARTE
Astrobiólogo estuda os efeitos dos raios UV em microorganismos num cristal de sal. Objetivo é investigar a panspermia: a origem da vida fora da Terra. Artigo foi capa da revista Astrobiology
Você sabe o que é panspermia? Se alguma vez já imaginou que a vida na Terra possa ter vindo do espaço, então você conhece a resposta. Panspermia é a teoria segundo a qual a vida na Terra deriva de “sementes” de origem extraterrestre.
Esta proposta não tem nada de nova. É do século XIX (leia no final da reportagem). Após décadas de esquecimento, a panspermia voltou a ficar em voga a partir de 1996, quando a Nasa revelou a existência de um meteorito marciano de 4 bilhões de anos, dentro do qual havia supostas bactérias fossilizadas. Passados 27 anos, ainda não sabemos se as estruturas minerais microscópicas presentes no meteorito são de fato bactérias. Mas a presença daquelas microestruturas no meteorito bastou para abrir os olhos de um monte de gente — e alavancar o surgimento de uma nova disciplina, a Exobiologia, que mudou de nome e virou Astrobiologia.
Douglas Galante é um astrobiólogo brasileiro. Ele trabalha no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas (SP). Também é pesquisador associado ao Núcleo de Pesquisa em Astrobiologia, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo.
Douglas é o segundo autor de um artigo que foi capa da edição de março da revista Astrobiology. A autora principal é a argentina Ximena Abrevaya, da Universidade de Buenos Aires. O trabalho avaliou a capacidade de um cristal, a halita, servir como arca interplanetária para microrganismos alienígenas.
Trata-se de uma suposição mais do que plausível. Em 2022, pesquisadores americanos acharam evidências bacterianas no interior de cristais de halita australianos de 830 milhões de anos. As evidências são sólidos e líquidos orgânicos. Como se lê no artigo que anunciou a descoberta, “esses objetos são consistentes em tamanho, forma e resposta fluorescente com células de procariontes (células sem núcleo, leia-se: bactérias) e eucariontes (com núcleo) e compostos orgânicos. Esta descoberta mostra que microrganismos de ambientes de deposição salina podem permanecer bem preservados em halita por centenas de milhões de anos”.
Comumente conhecido como sal-gema, halita é a forma mineral do cloreto de sódio, o nosso sal comum de cozinha. Halita forma cristais incolores ou brancos, mas também há casos de cristais azuis, roxos, rosas, vermelhos, laranjas, amarelos ou cinzas, dependendo dos minerais e impurezas nela presentes.


JANGADA ESPACIAL
Há diversos outros exemplos de evidências de vida em cristais de halita. A meu ver, o achado mais impressionante veio em 2002, num cristal com mais de 250 milhões de anos, anterior aos dinossauros. Dentro do cristal, pesquisadores conseguiram isolar diversas cepas bacterianas. Ao investigar trechos de RNA, determinaram que, naquele sal do período Permiano, um dia proliferaram arqueas do gênero Halococcus — hoje encontrado apenas em locais com extrema salinidade. O material genético achado na halita permitiu aos pesquisadores descrever uma nova espécie de arquea! Já imaginou? É paleontologia levada à dimensão microbiótica!
Ora, se foi possível descrever uma nova espécie bacteriana que permaneceu 250 milhões de anos confinada em halita terrestre, por que não fazer o mesmo com halita extraterrestre? Bem, isso ainda não aconteceu. Mas chegamos perto. Em 1998, acharam-se evidências diretas da química pré-biótica complexa de um mundo rico em água no sistema solar. Tais evidências estão nos cristais de halita de dois meteoritos de 4,5 bilhões de anos, tão antigos quanto o sistema solar — e 800 milhões de anos anteriores às mais recuadas evidências indiretas de vida em nosso planeta, de 3,7 bilhões de anos (as evidências diretas são fósseis de 3,5 bilhões).
A consequência mais alucinante de detectar indícios pré-bióticos naqueles meteoritos é a possibilidade real da vida na Terra ter sido semeada a partir do espaço, transportadas em meteoritos marcianos. Sim, Marte. O planeta vermelho é a única origem exequível. O planeta vermelho é hoje um mundo estéril, mas não era assim há 4 bilhões de anos, quando lá havia oceanos. Vênus pode ser excluído. Não há nenhum sinal de que a superfície venusiana possa um dia ter abrigado vida.
Quão impermeáveis aos tremendos perigos inerentes ao vácuo espacial teriam que ser os cristais de halita para proteger bactérias a deriva por bilhões de anos?
“Em nosso estudo, investigamos o potencial dos cristais de halita para proteger formas de vida microbianas na superfície de um meteorito em travessias interplanetárias no início do Sistema Solar”, explica Douglas Galante.
Panspermia!

ADOLESCÊNCIA REBELDE
O espaço é um ambiente extremamente prejudicial à vida, em função do vácuo e das temperaturas extremas, de centenas de graus acima ou abaixo do ponto de congelamento (em torno de 0 ºC). Há também a danosa radiação, particularmente os perigosos raios ultravioleta.
Em baixa intensidade, raios UV são cancerígenos. Na forma mais intensa, são letais para a quase totalidade das formas de vida na Terra — à exceção de pouquíssimas bacterianas capazes de proliferar mesmo quando banhadas por radiação extrema. Sem dúvida, elas poderiam sobreviver no espaço, só não se sabe por quanto tempo e sob quais condições.
O vácuo interplanetário é também banhado pelo vento solar, um contínuo fluxo de partículas ionizadas emitidas pelo Sol, predominantemente núcleos de hélio ionizado e elétrons. Dependendo de sua intensidade, o vento solar pode torrar instantaneamente os ocupantes de uma espaçonave.
No passado era pior. Durante a formação do sistema solar há 4,5 bilhões de anos, quando o Sol era uma estrela jovem (hoje o astro-rei é um senhor de meia-idade), a radiação e o vento solar eram mais intensos e imprevisíveis, pois gerados em supererupções solares.
Foi justamente naquelas condições extremas que os dois meteoritos com evidências diretas da química prebiótica iniciaram a sua travessia interplanetária, há 4,5 bilhões de anos.

SIMULAÇÃO CÓSMICA
Os efeitos da exposição à radiação UV no vácuo (VUV) nos níveis encontrados no espaço já são conhecidos para diferentes tipos de microrganismos. “O que fizemos foi verificar a taxa de sobrevivência de microorganismos submetidos a exposições de VUV comparáveis àquelas esperadas durante eventos estelares energéticos, como supererupções solares. Ou seja, aqueles eventos presentes em estrelas jovens”, explica Douglas.
Os pesquisadores focaram em duas condições de exposição. A primeira investigou os efeitos de exposição de microorganismos às condições presentes no vácuo espacial numa órbita baixa da Terra, entre 160 km e 2.000 km da superfície.
A segunda condição investigou os efeitos da exposição de microorganismos submetidos a um banho intenso de radiação VUV muito energética, especificamente aquela observada entre os comprimentos de onda de 57,6 a 24 nanômetros (bilionésimos do metro).
Mais de 99% da radiação UV proveniente do Sol é barrada pela camada de oxônio que envolve a Terra. O 1% que atravessa o ozônio e chega à superfície tem radiação menos energética, dos comprimentos de onda de 320 a 400 nanômetros.
Já a radiação de comprimentos de onda de 57,6 e 24 nanômetros representa um cenário extremo, com fluxos de radiação VUV com ordens de magnitude duas a três vezes superiores à emitida pelo Sol quando jovem.

ARQUEAS E BACTÉRIAS
Para avaliar os efeitos protetores da halita, os pesquisadores recorreram ao uso da arquea Haloferax volcanii. Trata-se de um microorganismo que vive em condições de elevadas concentrações salinas. H. volcanii foi isolada nas águas do mar Morto, onde o sal representa 34% dos materiais em suspensão num litro d’água. Nesta concentração, as águas do mar Morto excluem qualquer possibilidade de vida, à exceção da arqueana ou bacteriana. Antes conhecidas como arqueobactérias, as arqueas formam um domínio de seres vivos unicelulares morfologicamente semelhantes às bactérias, porém genética e bioquimicamente muito distintos.
Os estudiosos também investigaram os efeitos protetores da halita na bactéria Deinococcus radiodurans (que quer dizer “resistente à radiação”). Trata-se da bactéria mais resistente que se conhece. Ela consegue sobreviver à radiação UV do espaço, em ambientes extremamente frios e oxidativos, assim como severamente ionizados e ao vácuo — mas não é resistente ao sal, como H. volcanii.
A arquea H. volcanii e a bactéria D. radiodurans foram aprisionadas no interior de cristais de halita cultivados em laboratório. O experimento incluiu igualmente células aprisionadas em diferentes cristais de sal (que não a halita) e células completamente expostas à radiação UV emitida por um feixe de luz muito intenso, circulando no interior do anel do acelerador de partículas LNLS, em Campinas.



ESPERANÇA DE VIDA EXTRATERRESTRE
Segundo o artigo, os experimentos mostraram, pela primeira vez, que os cristais de halita fornecem proteção ao vácuo nos níveis de radiação VUV presentes na órbita baixa terrestre e aos altos fluxos de VUV simulando a erupções e supererupções do Sol jovem.
O efeito protetor foi observado independentemente do tipo de microrganismo, demonstrando que a proteção por cristais de halita não está limitada a uma arquea tolerante ao sal (H. volcanii), podendo ser estendida a bactérias sem tolerância salina (D. radiodurans).
O estudo também mostrou que D. radiodurans pode suportar os efeitos fisiológicos do aprisionamento na halita, exibindo considerável viabilidade e resiliência.
Além disso, o experimento evidenciou a alta proteção que a halita oferece aos dois microrganismos, em comparação com cristais feitos de outras misturas salinas.
Já com relação à exposição ao vácuo, a taxa de sobrevivência das células embebidas em halita foi ao menos uma ordem de grandeza superior àquelas observadas entre as células totalmente expostas à radiação.
“Nossos resultados demonstram que a halita pode servir como proteção contra vácuo e radiação UV do vácuo espacial, independentemente do tipo de microrganismo”, avalia Douglas.
Com efeito, a halita agora se sabe que cristais de halita podem muito bem servir de arca celeste para proteger microorganismo do vácuo espacial e de elevadas doses de raios
Mas, será que foi assim mesmo? Poderia a vida na Terra ter sido semeada há mais de 4 bilhões de anos a partir de bactérias embebidas nos cristais de halita de um meteoro?
Em tese, sim! Na prática, o que falta é conseguir reviver quaisquer microrganismos encontrados no interior de meteoritos de bilhões de anos. Enquanto isso não ocorre, a ideia da panspermia continuará cativando os astrobiólogo. Apesar de inspirada, permanecerá teórica.

PEQUENA HISTÓRIA DA PANSPERMIA
A panspermia não é uma ideia recente. Tem mais de 150 anos. Em meados do século XIX, duas teorias lançaram as bases para se imaginar como seria a vida no espaço. A teoria da evolução de Charles Darwin foi, naturalmente, uma delas. A outra foi a teoria bacteriológica, onde o médico francês Louis Pasteur defendeu que toda doença infecciosa tem origem nos microrganismos. Aliado a isso, a ciência da Astronomia começava a alçar voo. Por exemplo, Deimos e Phobos, as duas luas de Marte, foram observadas pela primeira vez em 1877.
Como o que os grandes pensadores mais fazem é pensar, não tardou para a ideia da panspermia a ser hipotetizada por alguns dos maiores pesquisadores do final do século XIX. Lembra dos graus Kelvin das aulas de química? Então, pois foi ele mesmo. Sir William Thompson, o lorde Kelvin, escreveu o seguinte em 1971: “Devemos considerar provável no mais alto grau que existam inúmeras pedras meteóricas portadoras de sementes movendo-se pelo espaço. Se (…) não existisse vida sobre esta Terra, uma dessas pedras caindo sobre ela poderia, pelo que chamamos cegamente de causas naturais, fazer com que ela ficasse coberta de vegetação.”
Ainda em 1971, outro monumento do século XIX, o físico prussiano Hermann von Helmholtz, comentou o seguinte referindo-se aos meteoritos: “Quem sabe se esses corpos, que fervilham por toda parte no espaço, não espalham germes de vida onde quer que haja um mundo novo, que se tornou capaz de dar morada aos corpos orgânicos?”
Já no comecinho do século XX, o químico sueco Svante Arrhenius sugeriu que os micróbios poderiam ser transportados pelo universo pela radiação solar. Os esporos bacterianos, afirmava ele, podiam sobreviver a longos períodos de frio profundo.
A proposta da panspermia sobreviveu assim, com seus altos e baixos, até 1953. É quando foi realizado o famoso experimento Miller. Foi assim: pesquisadores americanos colocaram num balão de vidro os elementos químicos e compostos atmosféricos que estavam presentes na Terra primitiva. A seguir, dispararam por vários dias descargas elétricas, simulando os relâmpagos das tempestades. Como produto das reações químicas no interior do balão de vidro, foram sintetizados aminoácidos, as pedrinhas constituintes do código hereditário. Falando nele, a partir da descoberta da estrutura da hélice dupla do DNA, em 1954, a origem da vida na Terra foi alçada ao nível de paradigma. E a panspermia foi perdida no esquecimento das ideias fracassadas.
A noção de que a vida poderia ter sua origem no espaço permaneceu no limbo até 1996. Foi quando a Nasa revelou a existência de um meteorito marciano de 4 bilhões de anos, dentro do qual haveria bactérias fossilizadas, o que jamais foi comprovado. No entanto, foi mais do que suficiente para resgatar a panspermia e, finalmente, poder testá-la, analisando o crescimento de bactérias no espaço. Ou então simulando em laboratório as condições espaciais extremas. Como fez Douglas Galante no LNLS.
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