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A VIDA ANIMAL INICIOU COM UM TUMOR BENIGNO

Pesquisadores da UFSC identificam os ancestrais comuns de todos os animais nos primeiros ctenóforos, seres gelatinosos e translúcidos como a carambola-do-mar (na foto acima), e que evoluíram nos mares há mais um bilhão de anos.

O que diferenciou o mundo unicelular da vida pluricelular dos primeiros ctenóforos teria sido uma única célula que desenvolveu um tumor e se dividiu em outras duas. Como o tumor era benigno, as duas células sobreviveram. São as ancestrais de todos os animais.

“Somos todos fruto de um tumor benigno”, diz Jaime Cofre.

 

METAMORFOSE AMBULANTE

O grande filósofo popular Raul Seixas acertou quando profetizou sermos todos metamorfoses ambulantes. Com efeito, somos uma longa metamorfose, o que se torna evidente quando consideramos a vida, desde a sua concepção, como nada mais do que uma inexorável sequência de transformações bioquímicas pré-programadas em nossas células.

Assim, a vida principia com uma única célula que, ao ser fecundada, passa a se multiplicar freneticamente ao longo do processo embrionário até culminar no nascimento, seguido pelo crescimento, envelhecimento e morte.

A multiplicação embrionária segue um ordenamento programado, com começo, meio e fim, cessando quando o embrião está completo e pronto para nascer.

Quando a multiplicação celular é descontrolada, seu nome é câncer.

 

cells dividing
Ilustração exibe célula se dividindo por meio da mitose

 

EMBRIÃO OU NEOPLASIA?

Há várias décadas, os oncologistas reconhecem nas células tumorais, ou neoplásicas, diversas características e processos similares àqueles observados apenas na fase embrionária da vida animal, explica o biofísico, oncologista, e biólogo evolutivo Jaime Cofre, do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

“Como oncologista, estudo o tumor da leucemia mieloide aguda. Não me canso de perceber neste câncer similaridades profundas com a embriologia. A mais evidente de todas nos mostra que, nas células tumorais em multiplicação desenfreada, estão ativados os mesmos genes e proteínas responsáveis pela multiplicação ordenada nas células embrionárias”, diz Cofre.

É daí que decorre a visão tradicional de que tumores são células saudáveis que, em algum momento, seja devido a fatores ambientais, seja por conta de uma mutação inesperada, começam a se multiplicar descontroladamente.

“Na visão tradicional, os tumores são células mutantes que deixaram de ser saudáveis… Será mesmo? E se fosse o oposto? E se quem estivesse no início desta história não fosse uma célula saudável, mas um tumor?” indaga Cofre.

A partir do momento que tiveram esta faísca, Cofre e seu colega, o zoólogo Kay Saalfeld, também da UFSC, passaram anos matutando sobre as similaridades e diferenças entre as células embrionárias e tumorais. Queriam encontrar evidências capazes de sustentar a hipótese por eles formulada. Uma hipótese completamente inédita, surpreendente e para lá de ousada. Seria o primeiro animal resultado da proliferação de uma célula tumoral benigna? Ou, como prefere Cofre: “no princípio, era o tumor. Quando foi possível contê-lo, surgiu o primeiro embrião”.

 

 

célula tumoral se dividindo
Ilustração exibe células tumorais no instante da sua divisão

 

A PRIMEIRA MITOSE

Com efeito, Cofre e Saalfeld defendem a teoria de que o primeiro embrião animal, o ancestral comum a todos os animais, nada mais era do que o resultado da multiplicação ordenada de uma célula neoplásica benigna, ou melhor, um tumor benigno. Nesta visão, o câncer é tão antigo quanto a vida unicelular.

Sabe-se que as bactérias, as quais são microorganismos unicelulares, evoluíram nos oceanos há, no mínimo, três bilhões de anos. A partir de então, toda vez que uma bactéria sofria uma mutação neoplásica, ela se dividia e morria.

Foi assim por incontáveis eras. Até que um belo dia, há cerca de 600 milhões de anos, nos mares do período Ediacarano (entre 630 e 542 milhões de anos atrás), uma bactéria qualquer sofreu uma mutação neoplásica diferente. Em vez de se dividir e morrer, aquela bacteriazinha em particular adquiriu novos genes capazes de controlar a divisão celular. Assim, ela se dividiu uma primeira vez, e as duas células resultantes sobreviveram. Estas, por sua vez, herdaram os genes da neoplasia benigna, que legaram às gerações seguintes. A esta neoplasia benigna original teorizada pelos pesquisadores damos hoje o nome de mitose: a divisão de uma célula em duas outras, idênticas.

Eventualmente, as descendentes daquelas primeiras células neoplásicas benignas passaram a se dividir múltiplas vezes, sobrevivendo a todas elas. Ao longo de milhões de anos, tal multiplicação controlada deu origem a comunidades de células que passaram a depender umas das outras para sobreviver, dividindo entre si as funções vitais. Foi quando surgiram os primeiros organismos multicelulares. Os primeiros animais. Nossos ancestrais.

Perceba que a beleza da história relatada acima se resume à ousadia de Cofre e Saalfeld colocarem uma célula neoplásica no papel da primeira célula animal que se dividiu e conseguiu sobreviver. O resto da história coincide ipsis litteris com a visão tradicional que se tem da origem da multicelularidade, ou melhor, da origem do primeiro embrião.

 

embrião humano de nove semanas
Imagem de um embrião humano de apenas nove semanas

 

BOTANDO A CARA PRA BATER

“Ficamos sete anos em silêncio remoendo esta teoria e reunindo evidências para sustentá-la. Investimos este tempo todo investigando a origem dos primeiros animais. Enfim, a gente tomou coragem para apresentar a ideia à comunidade científica”, confessa Cofre.

Só agora Cofre e Saalfeld consideraram ter reunido argumentos suficientes para embasar sua teoria, e poder botar a cara para bater. No artigo “O primeiro embrião, a origem do câncer e a filogenia animal”, publicado na revista de alto impacto Frontiers in Cell and Developmental Biology, os autores apresentam a primeira parte da sua teoria (a segunda parte sairá em breve).

“Neste primeiro artigo, estabelecemos que o surgimento da multicelularidade só faz sentido se explicarmos a formação do primeiro embrião”, explica Cofre.

“Especulamos que os fenômenos biofísicos e o ambiente do oceano ediacarano foram fundamentais para cooptar os genes neoplásicos no primeiro zigoto, a primeira célula completa do futuro embrião”.

Segundo os autores, o processo neoplásico é um fenômeno biológico com profundas implicações embriológicas, que serviu como o motor evolutivo que favoreceu a formação do primeiro embrião e das doenças cancerígenas.

“Câncer e embrião são o mesmo”, dispara Cofre.

 

carambolas-do-mar ou águas-vivas-de-pente
Carambolas-do-mar são assim chamadas porque o formato de muitas espécies lembra uma carambola

 

CÂNCER ONIPRESENTE

“As pessoas geralmente pensam que só os humanos têm câncer. Não é verdade. Todos os animais têm câncer. Os mamíferos têm câncer, assim como os peixes, anfíbios, répteis e aves. Os invertebrados também têm câncer. Mesmo as linhagens mais antigas de animais, o caso das esponjas, dos cnidários (alga-marinhas) e ctenóforos (carambolas-do-mar), também têm câncer”.

Para entender a onipresença do câncer em nossas vidas, considere o seguinte: O corpo humano tem 37 trilhões de células. Milhões de divisões celulares acontecem todos os dias. Como, por exemplo, no crescimento de pelos e cabelo, ou no acúmulo de gordura, na reposição das células da pele que vão morrendo, ou na incessante produção de novas células no baço e na medula espinhal.

O genoma ou DNA humano é um conjunto de três bilhões de bases que representam 100.000 genes. Toda vez que uma célula divide, cada uma dos três bilhões de bases é copiada. A cópia de cada base precisa ser idêntica à original. Quando isso falha, temos uma mutação.

Resultado de bilhões de anos de evolução, o mecanismo de divisão e cópia do DNA é fantasticamente acurado, uma vez que a vida na Terra depende de tal acurácia. Mas não é infalível. Dia após dia, dentro de cada um de nós, em meio às dezenas de milhões de divisões celulares que acontecem, pipocam centenas de mutações.

A quase totalidade destas mutações é inofensiva. Umas poucas mutações são potencialmente nocivas, porém os mecanismos de controle de qualidade da máquina molecular dão conta de corrigi-las, ou silenciá-las. Só que isto nem sempre é possível. Muito raramente, ao longo das dezenas de trilhões de mutações que nos acompanham ao longo da vida, uma ou outra mutação potencialmente nociva consegue escapar dos mecanismos de controle, dando origem a células neoplásicas.

“É quando surge um tumor”, explica Cofre. “O câncer faz parte da gente”.

“Exatamente por isso, defendemos que os oncologistas devam investigar a origem do câncer não como uma doença, mas no contexto do processo embrionário e, principalmente, por meio de uma ótica evolutiva”.

 

 

CARAMBOLAS-DO-MAR OU ÁGUAS-VIVAS-DE-PENTE

Não cabe ao escopo desta reportagem adentrar nos meandros moleculares e fisiológicos da embriologia do câncer, onde os autores foram encontrar os argumentos para defender sua teoria. Tais argumentos são de interesse apenas dos cientistas. Destaco apenas que, para os autores, suas pesquisas os levaram à conclusão de que os primeiros animais, os nossos ancestrais mais recuados na esfera multicelular macroscópica, provavelmente eram os ctenóforos.

Trata-se de uma afirmação intrigante. Ctenóforos são uma linhagem de animais marinhos translúcidos cujos representantes viventes são as carambolas-do-mar ou águas-vivas-de-pente. São criaturas extremamente parecidas com as águas-vivas. Mas ctenóforos não são águas-vivas.

A biologia molecular mostra que as linhagens animais mais antigas são as dos ctenóforos, das águas-vivas (cnidários) e das esponjas (poríferos). Entre as três, trabalhos recentes baseados no relógio molecular apontam os ctenóforos como a linhagem mais antiga.

O registro fóssil, entretanto, vai noutra direção. Os fósseis mais antigos de animais são esponjas de 890 milhões de anos, muito anteriores ao período Ediacarano (630 a 542 milhões de anos). Os fósseis mais antigos de águas-vivas, estes sim, ediacaranos, têm 580 milhões de anos. Já os fósseis mais antigos de ctenóforos têm 518 milhões de anos. São do período Cambriano (542 a 490 milhões de anos). No caso, trata-se de duas criaturas chinesas cheias de tentáculos. Xianguangia sinica tinha 16 tentáculos. Daihua sanqiong, 18. Um pouco mais recente, Siphusauctum lloydguntheri é um fóssil canadense de 510 milhões de anos.

Não há contradição alguma em não conhecermos ctenóforos fossilizados mais antigos do que esponjas (ou águas-vivas), pois o registro fóssil é sabidamente falho e incompleto. Para Cofre e Saalfeld, se os fósseis conhecidos de esponjas e águas-vivas são mais antigos, é porque não foram achados até o momento ctenóforos fósseis ainda mais antigos. Não quer dizer que eles não existam.

“Ctenóforos são gelatinosos, são difíceis de conservar”, afirma Cofre. “Evidências filogenômicas já colocaram estes animais tão difíceis de fossilizar na base da origem animal. Evidências embriológicas também os identificam como os primeiros animais”.

Na visão de Cofre e Saalfeld, aquela primeira célula que desenvolveu um tumor benigno, se dividiu e sobreviveu, acabou dando origem aos primeiros animais multicelulares, os ancestrais diretos dos ctenóforos.

 

 

NOVOS PARADIGMAS

Apesar dos rasgados elogios dos pesquisadores anônimos responsáveis pela revisão do seu artigo científico antes da publicação, como Cofre me contou, à medida que sua teoria for ficando conhecida os autores estão preparados para virar saco de pancada da academia. Isto não é ruim. Ao contrário, é ótimo. A boa ciência é feita apesar, e por causa, das dúvidas e críticas que suscita.

Ninguém no momento pode garantir que a teoria de Cofre e Saalfeld esteja certa ou errada. Caso os argumentos dos dois pesquisadores de Santa Catarina consigam sobreviver à saraivada de críticas que certamente virá, quem sabe suas ideias prosperem? Quem sabe, inclusive, esta teoria que relaciona pela primeira vez o câncer à origem da vida multicelular possa angariar adeptos e defensores? O papel destes últimos será descobrir novos argumentos capazes de aperfeiçoar a teoria, fazendo-a avançar pelo caminho que desemboca num novo paradigma.

“O Kay (Saafeld) costuma dizer que a ciência funciona assim: em primeiro lugar, muitos pesquisadores vão negar nossa teoria, vão dizer que está errada, ou que não tem pé nem cabeça. Dentro de uns anos, alguns pesquisadores começarão a encontrar argumentos mostrando que ela faz algum sentido e vale à pena ser investigada. Daqui a 20 anos, as pessoas vão dizer: “mas isto é óbvio! Como foi que ninguém pensou nisso antes?” diz Cofre, gargalhando. Ele é um sujeito muito simpático e empolgado com o que faz.

 

Ctenophora
Na origem dos animais: apenas 150 espécies de ctenóforos viventes são conhecidas

 

A PRETEXTO DE UM EPÍLOGO

Hoje se sabe que a multicelularidade surgiu de forma independente ao menos 25 vezes na história da vida. Destas, seis vezes foram em grupos macroscópicos: animais, fungos, algas (três vezes) e plantas. “As plantas também têm câncer, porém vamos deixar para estudá-las só daqui a uns dez anos”, diz Cofre.

No caso dos animais, elucidar a sua origem é uma meta que vêm sendo perseguida desde os naturalistas do final do século XVIII, como Buffon, Lamarck e Cuvier. A partir da publicação por Darwin da A Origem das espécies (1859), essa busca foi enquadrada na teoria evolutiva.

Dito isto, é praticamente certo que a identidade dos primeiros animais jamais seja desvendada. Por definição, as espécies mais antigas que vierem a ser descobertas pelos paleontólogos serão, necessariamente, descendentes de espécies ainda mais antigas, portanto desconhecidas.

Não quer dizer que a ciência não possa desvendar os segredos moleculares que possibilitaram à evolução dos primeiros animais. Neste sentido, Cofre e Saalfeld defendem que invertebrados e vertebrados, sejam eles macroscópicos ou microscópicos, descendem de uma célula tumoral primordial, que teve êxito em frear seu ímpeto de multiplicação desenfreada.

Assim, e retornando ao início desta reportagem, aquilo que os dois pesquisadores pretendem provar é, em última instância, que o ancestral comum a todos os animais era um câncer.

Não sei você, mas acho esta ideia fascinante!

 

Você achou instigante a teoria que relaciona a origem dos animais com a origem do câncer e com os ancestrais das carambolas-do-mar? Quer saber mais sobre a vida nos rios e mares brasileiros?

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