O improvável lótus do Araripe
O fóssil do lótus do Araripe é o mais antigo e mais completo já achado. Crescia em lagoas costeiras no Nordeste, há 121 milhões de anos
- Peter Moon
- 14/06/2023
- 18:17

Discípulo de Aristóteles, o grego Teofrasto de Eresos (372 a-287 a.C.) é lembrado por ser o pai da botânica. Em sua obra História das Plantas, a mais importante contribuição à ciência botânica de toda a antiguidade, Teofrasto escreve o seguinte:
"No Egito, o feijão cresce em pântanos e brejos. Seu comprimento máximo de caule é de quatro côvados (cerca de 1m80); tem uma polegada de espessura e se assemelha a uma palheta flexível e desarticulada. No interior existem tubos separados ao longo do seu comprimento, como um favo de mel. No caule estão a cabeça e a flor, o dobro do tamanho de uma papoula; sua cor é a de um rosa escuro. Do caule crescem folhas grandes, e a raiz é mais grossa que a raiz do junco mais grosso. É comido cozido, cru ou assado, sendo utilizado como alimento por todos que vivem próximos aos pântanos. Também cresce na Síria e na Cilícia (Turquia), mas não amadurece nesses países. Também ocorre em um pequeno brejo perto de Toroni, na península calcídica (na Grécia), e aqui amadurece e dá frutos perfeitos".
Esta descrição que Teofrasto fez do seu “feijão do Egito” interessa por várias razões. A primeira, é porque está errada. A planta à qual Teofrasto se refere é de fato uma angiosperma, porém jamais foi um feijão. Nós a conhecemos como lótus, uma planta aquática da família das nelumbonáceas e dona de uma flor de singela beleza.
Outro motivo pelo qual a descrição de Teofrasto importa é porque ela, grosso modo, bem que poderia ser usada para descrever uma espécie extinta de lótus que crescia há 121 milhões de anos, no Cretáceo inferior, fincando suas raízes no lodo das lagoas e brejos onde fica hoje a Chapada do Araripe, encravada entre Ceará, Pernambuco e Piauí. Trata-se do mais antigo lótus de que se tem conhecimento.
A terceira razão pela referência a Teofrasto tem a ver justamente com o nome do novo gênero de lótus: Notocyamus, que quer dizer “feijão do Sul”, uma homenagem dos autores a Teofrasto e seu “feijão egípcio” (pois notos em grego quer dizer sul, e cyamus quer dizer feijão). Sua descrição acaba de sair publicada no revista Scientific Reports.
QUALIDADE ALUCINANTE
O fóssil que serviu de base para descrever o lótus do Araripe se encontra impressionantemente completo, preservando raízes, caule, folhas e fruto – todos ainda conectados, como estavam em vida! O espécime tem cerca de 50 cm de comprimento e 25 cm de largura, e preserva cerca de 30 raízes, 13 folhas e um único fruto. É como se a laje de calcário onde repousa o fóssil fosse uma chapa fotográfica que esperou 121 milhões de anos para ser revelada.
“Notocyamus hydrophobus é o mais antigo e o mais completo fóssil conhecido de um lótus, e o único proveniente dos trópicos no período Cretáceo”, explica o primeiro autor do trabalho, o paleobotânico William Vieira Gobo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“A flor não está presente, apenas porque a planta foi sepultada no lodo de um lago após a sua fertilização, momento em que a flor já havia dado lugar a um fruto”, explica William, o primeiro autor do artigo com a descrição do lótus do Araripe. O fóssil também exibe nas folhas sinais de galhas, ou seja, de crescimentos anormais nas plantas provocados por insetos e ácaros que vivem ou se alimentam das mesmas.
Participam do estudo pesquisadores da Universidade Regional do Cariri, da Universidade Federal do Ceará, da Universidade Livre de Berlim, e do Museu Senckenberg de História Natural, em Frankfurt. Os espécimes que serviram de base para a descrição encontram-se depositados no museu de Dresden e no Museu de História Natural de Berlim.

REVIRAVOLTA EVOLUTIVA
Até o momento, acreditava-se que a linhagem dos lótus havia evoluído em porções temperadas do hemisfério norte. A razão para isso se devia ao fato de que as cinco espécies fósseis do Cretáceo anteriormente conhecidas serem provenientes de regiões temperadas. A espécie mais antiga é do Cazaquistão, de 105 milhões de anos. Quanto às demais espécies extintas, duas delas foram achadas nos Estados Unidos, uma no México, no Canadá e outra na Sibéria.
Outro fato a contribuir para a impressão de que a linhagem dos lótus havia evoluído em climas temperados é o fato das duas únicas espécies viventes ocorrerem no sul dos Estados Unidos e no sul da Ásia.
Tudo apontava, portanto, para uma origem dos lótus no antigo supercontinente setentrional de Laurásia. Mas o fóssil do Araripe veio para alterar este quadro. Ele evidencia que, há 121 milhões de anos, as primeiras nelumbonáceas cresciam no supercontinente meridional de Gonduana. N. hydrophobus é uma nova peça fundamental no tabuleiro biogeográfico das nelumbonáceas. Sua descrição acaba de reescrever a história evolutiva da linhagem dos lótus.

UM TESOURO BRASILEIRO
A Chapada do Araripe é um tesouro paleontológico brasileiro reconhecido em todo o mundo. Seus fósseis maravilhosamente preservados revelam em detalhes a fauna e flora que existia no Nordeste quando a América do Sul separava-se da África. Os fósseis da formação Crato, por exemplo, revelam a transição de um ambiente de lagoas e brejos para um ambiente de estuários e lagunas costeiras.
Assim, nas rochas de 121 milhões de anos encontram-se restos das plantas, peixes, anfíbios, insetos e artrópodes que habitavam antigas lagoas. O lótus é daquela época, assim como Cratolirion, o mais antigo dos lírios (Nature Plants, 2019), e Gondwanagaricites, o cogumelo mais antigo já encontrado (PLOS One, 2017).
Já nas rochas de 110 milhões de anos, naquele ambiente lagunar viviam mais de 30 espécies de pterossauros, além de dinossauros como Angaturama limai, um parente do espinossauro, e de Cratoavis, a mais antiga ave das Américas (Brazilian Journal of Geology, 2015), entre uma infinidade de outras criaturas.

DESCAMINHO E REPATRIAÇÃO
De acordo com um livrinho excelente, o Guia de fósseis da Bacia do Araripe (2021), editado por paleontólogos da URCA, já foram descritas ao todo 36 espécies de plantas do Araripe – 37 com o lótus. Destas, 24 holótipos encontram-se no exterior, sendo que 19 deles nas coleções do museu de Berlim, como são os casos do lótus e do lírio do Araripe.
A descrição do lótus foi realizada no âmbito do projeto “Rumo a uma análise integrada do Crato Fossil Lagerstätte do Cretáceo Inferior”, que reúne museus alemães e universidades brasileiras.
Para William Gobo, “é uma boa iniciativa, ao dar a chance a pesquisadores brasileiros de participar na descrição de novas espécies, com base em fósseis que jamais deveriam ter saído do Brasil. Através da colaboração científica entre instituições alemãs e brasileiras, os autores estão articulando a repatriação dos fósseis em um futuro próximo”.
A legislação brasileira proíbe a exportação de fósseis desde 1942. Porém, nos anos 1990, o tráfico de fósseis foi particularmente intenso no Araripe. Foi principalmente por esta época, ou mesmo antes, que saíram do país as extensas coleções de fósseis depositados em instituições europeias, americanas e japonesas.
Em 12 de junho de 2023, após três anos de uma batalha judicial movida por paleontólogos brasileiros, foi repatriado o fóssil do dinossauro Ubirajara jubatus, que tinha sido contrabandeado e estava no Museu de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha. Seu novo lar é o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, em Santana do Cariri (CE).
Torçamos para que novos fósseis tomem o mesmo rumo de volta ao Brasil – e que o governo combata com afinco o tráfico de fósseis, que diminuiu, mas de forma alguma desapareceu.
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