Ainda dá para salvar o lambari-cego do córrego Escuro?

Peixinho despigmentado habita o lençol freático de Jaíba (MG). Espécie conta com 26 adaptações para a vida subterrânea. Mas ninguém o viu desde 2013. Estará extinto?

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CLIQUE PARA AMPLIAR – O lambari-cego de Jaíba (MG) é o único caracídeo cego da América do Sul. Peixe conta com 35 adaptações para a vida subterrânea (fotos: Lina Bichuette)


No interior das cavernas brasileiras, isolados do mundo exterior há dezenas de milhares, centenas de milhares ou até mesmo milhões de anos, voam, nadam, andam e rastejam formas de vida únicas, altamente especializadas e insubstituíveis. Uma espécie emblemática é o lambari-cego de Jaíba (MG), um peixinho despigmentado que atende pelo impronunciável nome científico de Stygichthys typhlops, que em grego quer dizer, literalmente, “peixe subterrâneo de olhos cegos”.

Trata-se de um nome inspirado. Na mitologia grega, a ninfa Estige (ou Styx), filha dos titãs Oceanos e Tétis, era a deusa das águas subterrâneas. Estige também era o nome do rio que separava o reino dos vivos do reino dos mortos, ou Tártaro. Para cruzar o Estige, os mortos recorriam aos serviços do barqueiro Caronte, o mesmo que transportou os poetas Dante Alighieri e Virgílio na Divina Comédia.

S. typhlops é o único lambari-cego da América do Sul. Desde a sua descrição, há 60 anos, nunca mais se descobriu nenhum outro membro cego da família dos caracídeos em nosso continente. No México há vários exemplos de caracídeos cavernícolas cegos. Mas, na América do Sul, o lambarizinho de Jaíba é precioso e único”, explica a bióloga Maria Elina Bichuette, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Lina, como todas a chamam, devotou sua vida ao estudo dos ecossistemas subterrâneos. 

“Eu tenho esperança que este peixe não esteja extinto”, confessa Lina.


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Paisagem árida do carste, a formação geológica na qual corre o lençol freático e aonde vive o lambari-cego

 

60 ANOS DE SOLIDÃO

O temor de Lina é plenamente justificável, pois o peixinho, presente na lista dos animais brasileiros em risco de extinção desde 2014, não é avistado desde 2013. Curiosamente, o lambari-cego não habita nenhuma caverna aberta para o exterior. Ele vive no lençol freático do córrego Escuro, um pequeno afluente de uns 15 quilômetros do rio Verde Grande, na região do alto rio São Francisco, no norte de Minas Gerais, próximo à Bahia. 

O lambari-cego, que os jaibenses conhecem como piaba-branca, atinge até 4,6 centímetros de comprimento. A espécie foi descrita há 60 anos, em 1962, com base num único espécime coletado a 30 metros de profundidade durante a escavação de um poço. A descrição saiu em Notulae Naturae, publicação da Academia de Ciências Naturais da Filadélfia.

A segunda vez que os cientistas puderam botar os olhos no peixinho foi em 2004, em duas expedições de ictiólogos do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. Os pesquisadores envolvidos, entre eles Lina Bichuette, precisaram recorrer a cordas e escadas para descer em dois poços da região de Jaíba e coletar 34 espécimes, segundo estudo publicado no Journal of Fish Biology

O peixinho tem hábitos solitários. Segundo os pesquisadores, os exemplares colocados em um aquário se mostraram indiferentes uns aos outros. Como geralmente as águas dos lençóis freáticos são pobres em alimentos, os especialistas acreditam que esses peixes se concentram na parte superior do aquífero, onde a oferta de alimento é maior, pois a matéria orgânica desce desde a superfície. Microcrustáceos chamados ostrácodes foram observados em radiografias dos estômagos de cinco espécimes. Um caso de canibalismo em cativeiro também foi observado. 

Na terceira e última vez expedição para coletar espécimes, em 2013, Lina e colegas capturaram sete peixinhos. Nesta oportunidade, os pesquisadores puderam verificar uma dieta mais variada. Em seus estômagos foram encontradas larvas de besouros aquáticos, além de restos de Hemiptera (ordem de insetos das cigarras e percevejos), de cupins e de artrópodes (artigo em Speleobiology Notes). 

Dez anos depois, em maio de 2023 Lina e colegas publicaram em Frontiers of Ecology and Evolution uma análise transcriptômica do peixinho. A análise transcriptômica permite o estudo de como a expressão gênica muda em diferentes organismos. No caso do lambari-cego, os pesquisadores encontraram 26 especializações desenvolvidas pelo peixinho para a vida nas cavernas, entre características morfológicas, capacidades sensoriais e comportamento. “É um dos peixes mais especializados do mundo, e o peixe mais especializado do Brasil”, afirma Lina. 

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Uma das cacimbas, os poços cavados pela população de Jaíba, e local onde foram capturados lambaris-cegos em 1962, 2004 e 2013. Lina quer voltar à região na esperança de achar o peixinho

 

 

BANANAL INTENSIVO

Desde 2013, nenhum outro espécime foi visto. Teria o lambari-cego de Jaíba cruzado o destino que separa as espécies viventes daquelas extintas?

A espécie é reconhecida oficialmente desde 2014 como ameaçada de extinção. Segundo a população de Jaíba, o peixe era relativamente comum até o final dos anos 1980. Ele costumava ser avistado em fontes e nascentes, ou quando alguém resolvia cavar uma cacimba, que é como chamam naquela região os pequenos poços d’água para abastecer a população, sua lavoura e gado. 

Mas os avistamentos do lambari-cego começaram a rarear nos anos 1990, a partir do momento em que o lençol freático passou a ser alvo de extração da água para o cultivo de banana em larga escala. Na cidade ficam grandes projetos de produção de bananas para exportação. Com a extração excessiva, o lençol freático foi rebaixando. Fontes nascentes secaram, e o peixinho desapareceu. 

Lina deseja montar uma nova expedição e voltar a Jaíba para procurar o peixinho, que ela espera não esteja extinto.

Embora existam na América do Sul diversas espécies de bagres adaptados à vida em cavernas, há apenas duas espécies de cavernícolas conhecidas de outras ordens de peixes: o lambari-cego Stygichthys typhlops e o peixinha elétrico Eigenmannia vicentespelaea.

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