- Peter Moon
- 17/02/2023
- 13:54

AMIZADE MILENAR ENTRE BOTOS E HOMENS
Tudo indica que as duas espécies colaboram na pesca da tainha nas lagunas de Santa Catarina há séculos… quiçá milênios
A tradicional pesca da tainha, realizada com colaboração de botos em algumas lagunas de Santa Catarina, é conhecida há mais de um século, e vem sendo pesquisada pelos cientistas desde os anos 1980. As vantagens obtidas pelos pescadores ao aguardar os botos conduzirem cardumes de tainha para as suas redes é mais do que óbvia. Eles capturam mais peixe, mais rápido, e com esforço minimizado. Já as vantagens conferidas aos botos não são tão claras assim (boto é como os golfinhos são chamados em Santa Catarina).
Os pesquisadores pressupõem, há décadas, que o esforço despendido por alguns indivíduos daquela população de golfinhos-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus gephyreus – localmente conhecidos como botos-da-tainha) deveria lhes conferir alguma forma de benefício. É óbvio achar que os botos só poderiam estar cooperando com os humanos em troca de alguma vantagem, qual seja provavelmente o seu quinhão de pescado. Porém, em ciência, uma coisa é achar. Outra, muito diferente, é provar. Por mais óbvio que pareça supor que gerações de botos habitantes das lagunas do município catarinense homônimo venham interagindo com humanos para obter alimento, para um cientista, supor não basta. Enquanto tal suposição não for comprovada por meios científicos, jamais deixaria de ser um palpite educado. Em termos científicos, a hipótese trabalhada pelos pesquisadores buscava comprovar que os botos estariam participando da pesca interativa somente caso este trabalho lhes conferisse uma vantagem adaptativa. Em outras palavras, se pescar com humanos favorecesse as suas chances de sobrevivência e/ou reprodução, quando comparada a uma vida marinha e independente dos humanos. Pois bem, agora em 2023 esta suposição deixou o plano do achismo para ingressar no plano da realidade, assim como aquela hipótese científica foi comprovada e entrou definitivamente para o rol do conhecimento científico. Num artigo publicado na revista americana PNAS, um grupo de pesquisadores brasileiros e colaboradores internacionais conseguiu pela primeira vez registrar evidências qual forma os botos se beneficiam da pesca interativa com pescadores artesanais em Laguna. “Nossa equipe registrou que alguns botos conseguem retirar tainhas da tarrafa dos pescadores e tentam se aproveitar daqueles que escapam dos pescadores”, explica o biólogo Fábio Daura, do Departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tarrafa é um tipo de rede de pesca circular arremessada pelos pescadores.Golfinhos pescam com humanos — Vídeo mostra momento em que os botos acham cardume de tainhas e avisam os pescadores, que lançam suas redes. Aumente o volume e ouça os cliques dos botos, que ficam cada vez mais frequentes e intensos


PESCARIA COLABORATIVA
“Desde 2007 monitoramos sistematicamente a população de botos, e a partir de 2018, também os peixes e os pescadores, fazendo de muitas tecnologias como GPS, drones, sonar e equipamento fotográfico,” diz Daura. A equipe estudou o comportamento de um grupo específico de 50 a 60 botos, que habitam a laguna de Santo Antônio dos Anjos, além de entrevistar 177 pescadores.
Quando vão “pescar com os botos” ou “trabalhar com os botos”, modo como os pescadores se referem à pesca cooperativa, acontece o seguinte:
Os pescadores se posicionam com suas tarrafas e aguardam os botos com água pelos joelhos, formando uma linha as margens do canal que conecta a laguna ao mar. Os botos, por sua vez, ao avistar os pescadores começam a procurar cardumes de tainhas que estão ao longo do canal, entrando na laguna. Uma vez localizados os peixes, num esforço coletivo os botos passam a “pastorear” o cardume na direção dos pescadores.
Uma vez em posição, os pescadores aguardam por algum tipo de comportamento dos botos entendido como um sinal de que um cardume de tainhas está próximo, vindo na direção dos pescadores. Esses “sinais” podem ser uma batida da cabeça na água, uma batida da nadadeira caudal, ou ainda o dorso de um deles que surge brevemente na superfície. Neste momento, os pescadores arremessam suas tarrafas.
A equipe usou hidrofones para descrever os sinais acústicos dos botos e identificou que, quando um pescador fazia um lançamento bem-sucedido de tarrafa, à medida que as redes atingiam a água, os animais emitiam mais cliques de ecolocalização, um tipo de som utilizado para localizar e capturar presas. Esse aumento na taxa de cliques é uma das evidências de que os botos estão tentando capturar tainhas desorientadas pelas redes, ou tentando arrancar alguns peixes de dentro da rede. Quando os pescadores erram o tempo de lançamento ou não responderam às dicas dos botos, os botos não emitem cliques, indicando que não estão capturando peixes.
“Os botos sabem o que estão fazendo. Eles aproveitam as ações dos pescadores para se alimentar,” diz Daura. “O sincronismo entre os pescadores e os botos é fundamental para o sucesso dessa interação”.


SINCRONIZAÇÃO PERFEITA
“Nós já sabíamos que os pescadores observavam os botos para determinar quando lançar suas redes”, diz o ecólogo brasileiro Maurício Cantor, o primeiro autor do trabalho científico e pesquisador do Instituto de Mamíferos Marinhos da Universidade Estadual do Oregon, nos Estados Unidos. “Mas não sabíamos se os botos estariam coordenando seus comportamentos com os pescadores”.
Agora os pesquisadores sabem que quem comanda a pesca são os botos. “Para garantir uma pesca bem-sucedida, os pescadores devem entender as dicas dos botos, que eles só aprendem com o tempo”, diz Cantor. “Os botos agem quase como se fossem professores dos pescadores.”
Segundo ele, os pescadores têm 17 vezes mais chances de pegar tainha quando os botos estão presentes. Além disso, os pescadores capturam quase quatro vezes mais peixes quando os botos estão presentes na área do que quando não estão. “86% das capturas bem-sucedidas durante o período de estudo vieram de pescadores que leram corretamente os comportamentos dos botos,” afirma Cantor.
A pesca cooperativa entre homens e botos acontece ao longo do ano todo, mas é muito mais intensa no outono, a época da migração das tainhas. É quando estes peixes migratórios, vindos do Uruguai e da Lagoa dos Patos (RS), chegam à laguna.
Os pesquisadores estudaram o comportamento específico de uma população com 50 a 60 botos. “A gente acompanha uma população de 50 a 60 indivíduos residentes, que estão sempre lá. A gente conhece cada indivíduo e os reconhece pelas manchas individuais na nadadeira dorsal”, diz Daura.
Os pesquisadores podem conhecer cada boto, mas quem os batizou foram os pescadores, com nomes curiosos como Caroba, Scooby, Eletrônico, Figueiredo ou Tafarel. A relação entre as duas espécies é de tal ordem, que existe até mesmo um cemitério onde os restos mortais dos botos são sepultados com respeito e carinho. O cemitério é muito bem cuidado, e cada cruz tem um nome, como o de Tafarel.

LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA
Segundo Daura, cerca de 40% desta população de botos interage com frequência com os pescadores. “Percebemos que os botos que interagem com frequência têm 13% mais chance de sobreviver de um ano para o outro do que os demais botos”.
Pode não parecer, mas estes 13% são uma porcentagem literalmente astronômica. Na natureza, a vantagem competitiva de um grupo de vertebrados para outro, e que define a maior chance de sobrevivência de cada um deles, muitas vezes é estimada em um ou dois indivíduos em mil, e ao longo de muitos milhares de anos, jamais 130 em mil de um ano para o outro, como é o caso deste grupo de botos, que vivem entre 50 e 60 anos.
Um exemplo de vantagem adaptativa dos botos que interagem com humanos é o fato deles não precisarem se aventurar em mar aberto ou pelas águas mais internas da laguna para buscar peixe, arriscando ficar emaranhados numa rede de pesca e morrer afogados – o que infelizmente não infrequente.
O número de tainhas pescadas vem caindo na última década devido à pesca predatória, revela Cantor. Segundo o estudo, se isso continuar acontecendo, a interação entre botos e pescadores não deve persistir por muito tempo. O Brasil precisa tornar essa relação dos botos e pescadores um patrimônio cultural e investir esforços para protegê-la, propõem os cientistas. “Sem tainha”, diz Cantor, “essa parceria terminará”.
A pesca interativa em Santa Catarina é ainda mais importante, quando se sabe que os outros casos documentados no mundo de cooperação entre botos e pescadores, se encontram em declínio ou mesmo desaparecendo. Ela acontece em certos locais no leste da Austrália, na Mauritânia, na África, e em Mianmar, no sudeste asiático.

SÉCULOS OU MILÊNIOS?
Ninguém sabe ao certo quando foi que os botos das lagunas de Santa Catarina começaram a interagir com os humanos durante a pesca da tainha. “Os pescadores mais velhos nos contam que seus bisavós já faziam isso. Daí pensar que tal interação já acontecia há 140 anos, no final do século 19”, explica Daura.
Isso não quer dizer que a pesca com botos em Laguna (SC) começou no século 19. Ela pode ser muito, muito anterior. “Não sabemos quando esta prática começou, mas a pesca com botos pode datar do período colonial, mas também pode ser muito, muito mais antiga. Pode ter iniciado com os índios, que viveram nessas lagunas por milhares de anos”, explica o pesquisador.
A existência de dezenas de sambaquis de até 6 mil anos naquela região catarinense permite corroborar esta possibilidade. Sambaquis, ou concheiros, são enormes montes de conchas, alguns com mais de dez metros de altura. São o resultado do descarte de conchas e material orgânico pelos índios ao longo de milhares de anos. Os arqueólogos já descobriram restos de golfinhos-nariz-de-garrafa em alguns sambaquis, indicando que eles faziam parte do cardápio indígena e que esta convivência é milenar.
Por fim, uma curiosidade: existem sambaquis em todo o mundo, mas o maior de todos, com 26 metros de altura, é o sambaqui Ponta da Garopaba do Sul, em Jaguaruna (SC), município vizinho de Laguna. Serviu de lixeira para milhares de índios ao longo de milhares de anos.
Gostou de saber como os botos pescam com humanos em Santa Catarina? Quer saber mais sobre a vida da fauna brasileira?
Então leia estas reportagens:
A multiplicação dos peixes-vampiro — Pesquisadores descobrem nove novas espécies de candirus. Todos são “vampirinhos” que se alimentam de sangue
Por que as baleias são gigantes — Cientistas da Unicamp descobrem os genes responsáveis pela evolução do gigantismo das baleias
Era uma vez um boto — Qual é a importância dos cientistas determinarem quantas espécies de botos habitam os rios da Amazônia?