Priscas Eras

Uma história ilustrada da evolução da vida na América do Sul

Ilustração: Maurílio Oliveira

abre rio do rastro
CLIQUE PARA AMPLIAR – A paleofauna da formação Rio do Rastro incluía, há 260 milhões de anos, répteis carnívoros e herbívoros, além de anfíbios gigantes e tubarões-de-água-doce


Os "Lençóis Maranhenses" do Rio do Rastro

O Sul do Brasil há 260 milhões de anos era habitado por uma fauna de savana. Mas, no lugar de búfalos, leões e crocodilos, haviam répteis grandes, médios e pequenos, vivendo ao lado de anfíbios gigantes

Imagine um cenário de savanas africanas, onde manadas de antílopes e búfalos se aglomeram à beira de rios e lagoas para beber. À espreita sempre aguardam leões e hienas, prontos para o bote. Nas águas lamacentas, crocodilos esperam o momento da presa beber água… O panorama do Sul do Brasil há 260 milhões de anos não era muito diferente. Todos os mesmos nichos da savana africano estavam respectivamente ocupados. Mas a fauna era muito, muito diferente.

Há 290 milhões de anos, o Sul do Brasil encontrava-se às margens do tempestuoso mar Irati, onde nadavam pequenos répteis marinhos, os mesossauros (leia nosso artigo “O Sul do Brasil há 290 milhões de anos”). Mas, há 260 milhões de anos, as águas haviam recuado, em função da elevação (ou, em termos geológicos, o soerguimento) de toda a região, e a consequente formação da cadeia montanhosa Gondwanides, que existiu entre 300 e 100 milhões de anos atrás e atravessava aquilo que hoje são quatro continentes: América do Sul, África, Antártida e Austrália.

No final do período Permiano, imediatamente antes da maior extinção ocorrida no planeta, as terras que hoje formam a região Sul do Brasil encontravam-se no interior do supercontinente Gonduana. Lá existia o delta de um grande rio ao lado de lagos de água-doce (Kern et al, 2021). Nas margens de ambos, dunas esculpidas pelos ventos bordejavam florestas formadas por árvores chamadas Glossópteris, e também por árvores-samambaia. Era um ambiente que guardava semelhanças com os atuais Lençóis Maranhenses.

Os vestígios daquele paleoambiente permiano estão preservados nas rochas da formação Rio do Rasto, depositadas entre 270 e 259 milhões de anos. Estas rochas também preservam os restos de uma fauna estranha e maravilhosa. Às margens do antigo delta, anfíbios gigantes se aqueciam ao sol, enquanto outros nadavam à procura de peixe ou tentavam abocanhar libélulas igualmente gigantes. As águas salobras eram infestadas por tubarões-de-água-doce. Já nas planícies costeiras, grandes manadas de répteis herbívoros eram acossadas por répteis carnívoros com dentes-de-sabre.

Conheça alguns deles:

Gondwanides
GONDWANA - Esta era a configuração do supercontinente há 260 milhões de anos. A cordilheira Gondwanides atravessava a área do que seriam quatro continentes atuais
(Andrias davidianus)
A Salamandra gigante da China (Andrias davidianus), uma parente longínqua dos temnospôndilos, pode atingir até 1,8 metro de comprimento

 

ANFÍBIOS GIGANTES

Hoje em dia, os maiores anfíbios viventes são as salamandras-gigantes chinesa e japonesa, que podem atingir atá 1,80 metro de comprimento. Elas são parentes muito distantes de antigos anfíbios verdadeiramente gigantescos, os temnospôndilos. 

Os temnospôndilos apareceram pela primeira vez há 320 milhões de anos, ainda no período Carbonífero. Foram um dos poucos grupos que sobreviveram à grande extinção do final do Permiano, que se deu há 252 milhões de anos. Porque sobreviveram, os temnospôndilos puderam presenciar o surgimento dos primeiros dinossauros no Triássico, e ainda tiveram tempo para observá-los assumir proporções descomunais no Jurássico, até desaparecerem no início do Cretáceo, há 120 milhões de anos.

Os paleontólogos já descreveram diversas espécies de temnospôndilos que faziam sua vida nas águas-doces da região do Sul do Brasil no final do Permiano (veja todos eles aqui).

Australerpeton
Australerpeton era um anfíbio gigante com 2,5 m. Ocupava o nicho dos crocodilos atuais


Australerpeton cosgriffi, ou “rastejante austral”, que na ilustração pode ser visto deitado na margem engolindo um peixinho, é o temnospôndilo mais completo já coletado na América do Sul. Seus fósseis foram encontrados na Serra do Cadeado, no Paraná. O bicho podia atingir 2,5 metros de comprimento, e tinha um focinho longo e afilado, com mais de 76 dentes e próprio para capturar peixes, à semelhança dos crocodilos gaviais que vivem ainda hoje nos rios da Índia (Eltink et al, 2014).


Bageherpeton
Bageherpeton era um pouco menor que Australerpeton. Seu nome homenageia a cidade de Bagé (RS)

 

Ao lado do Australerpeton, vê-se outro temnospôndilo que mergulha no lago, Bageherpeton longignathus, o “rastejante de Bagé” (Dias & Barberena, 2001). Ele tem este nome porque sua mandíbula inferior, que serviu de base para a descrição da espécie, foi achada entre as cidades de Bagé e Aceguá, no Rio Grande do Sul. Com base no estudo do fóssil, sabe-se que o bicho tinha mais de cem dentes pontiagudos. Com cerca de 2 metros de comprimento, tinha dimensão similar ao Australerpeton.

 

parapytanga
O anfíbio Parapytanga catarinensis e uma libélula-gigante

 

O terceiro temnospôndilo da ilustração é menorzinho. Parapytanga catarinensis (Strepasson, Pinheiro, Soares, 2015). Parapitanga, em tupi, quer dizer rio vermelho, uma alusão à coloração das rochas onde o fóssil permaneceu preservado por 260 milhões de anos. Seus fósseis foram coletados na Serra do Espigão, em Santa Catarina. Parapitanga se diferencia dos outros dois temnospôndilos pelo formato de seu crânio, que não apresenta um focinho comprido. Neste sentido, ele se assemelhava mais às suas distantes parentes, as salamandras gigantes viventes.

 

LIBÉLULA GIGANTE

Como Parapytanga tinha talvez um metro de comprimento, você pode estar se perguntando: aquela libélula que tenta abocanhar não seria grande demais? Responta: não, muito ao contrário. Era até pequenina. No Permiano viveu a maior libélula de que se tem notícia. Com uma envergadura de asas de 75 cm, Meganeuropsis permiana foi o maior inseto alado que existiu, último exemplo de uma linhagem que reinava soberana nos ares do Carbonífero. 

O fóssil de Meganeuropsis foi achado no Estados Unidos em rochas de 290 milhões de anos. Muito embora ainda não se tenha encontrado restos de libélulas gigantes no Brasil, a inclusão de uma delas nesta ilustração é uma liberdade criativa do artista — e minha também, pois fui eu que sugeri ao Maurílio sua inclusão. Ficou legal, não ficou?

 

Em primeiro plano vê-se Xenacanthus ragonhai, que era um xenocanto, ou tubarão-de-água-doce

 

TUBARÕES-DE-ÁGUA-DOCE 

Nas águas salobras do grande delta viviam tubarões-de-água-doce há muito extintos chamados xenacantos. Foram achados fósseis de xenacantos em todo o Brasil, do Maranhão até Santa Catarina. Entre as diversas espécies descritas, as maiores podiam medir mais de 3 metros de comprimento. As tochas da formação Rio do Rastro nos legaram os fósseis de ao menos duas espécies: Xenacanthus ragonhai (Pauliv, Dias, Sedor, 2012) e Sphenacanthus riorastoensis (Pauliv et al, 2014). Eles aparecem na ilustração em primeiro plano, no canto inferior esquerdo, e mais ao fundo e ao centro, abaixo do focinho do Bageherpeton.

 

formação rio do rastro: Pampaphoneus
Pampaphoneus era o predador de topo daquele paleoambiente. Aqui, ele é visto devorando um provelossauro que desgarrou da manada


PREDADORES E PRESAS

O grande fera das planícies na formação Serra do Rastro era Pampaphoneus biccai, o “matador dos pampas” (Cisneros et al, 2012). Seu fóssil foi achado em São Gabriel (RS). O animal é conhecido por um crânio completo de 32 cm, dotado de caninos longos (7 cm) e curvos. Pampaphoneus pertencia à família dos anteosaurídeos, os maiores predadores do Permiano. Era um anteosaurídeo de médio porte, uma vez que os maiores entre eles tinham crânios de até 60 cm. 

Na ilustração, Pampaphoneus é mostrado em cima do cadáver de um provelossauro que acabara de abater. Provelosaurus americanus (Cisneros, Dentzien-Dias, Francischini, 2021) eram répteis herbívoros de médio porte. Fósseis de sete indivíduos foram achados nos anos 1970 entre as cidade de Aceguá e São Gabriel, no Rio Grande do Sul. A concentração de tantos indivíduos juntos sugere um comportamento de manada, como ocorre com muitos herbívoros atuais. O provelossauro pertencia a um antigo grupo de répteis chamados pareiassauros. De médio porte, o bicho media cerca de 1,5 metro de comprimento, sendo, portanto, um pouco menor que uma anta.


Tiarajudens
Tiarajudens excentricus era um animal com um sério problema de identidade. Era um herbívoro com dentes-de-sabre, a assinatura de um carnívoro. Vai entender?

 

 

Posicionado à distância, outro animal observa toda a cena em segurança. Tiarajudens eccentricus (Cisneros et al. 2011) é chamado de excêntrico por causa dos seus inesperados dentes-de-sabre. Ele pertencia a um grupo de répteis herbívoros chamados anomodontes. Sua dentição, semelhante à de uma capivara, permitia à espécie se alimentar de plantas diferentes das consumidas pelos provelossauros, cujo formato dos dentes, semelhante ao da tartaruga, possibilitava apenas o corte de folhas. Apesar disso, o bicho tinha dentes-de-sabre. E para quê? Explica-se: hipóteses incluem manipular alimentos, espantar predadores, ou ainda exibir-se para adversários da mesma espécie. Seu nome homenageia o local onde foi achado: o bairro Tiaraju, em São Gabriel (RS).

 

procurvidens
O dicinodonte Rastodon procurvidens


Havia também um pequenino membro da linhagem dos dicinodontes, chamado Rastodon procurvidens (Boos et al, 2016). Ele está bem à esquerda, bebendo água na margem do rio. Seus restos foram encontrados em São Gabriel (RS). Rastodon quer dizer “dente do Rasto”, alusão à formação Rio do Rasto, ou Rastro. Já procurvidens quer dizer “dente curvo para a frente”. Naquele paleoambiente, Rastodon pode ter ocupado um nicho semelhante aos dos pequenos roedores.


 

REFERÊNCIAS:

Boos ADS et al. 2016. A new Dicynodont (Therapsida: Anomodontia) from the Permian of Southern Brazil and its implications for bidentalian origins. PLoS ONE 11(5):e0155000.

Cisneros et al. 2011. Dental occlusion in a 260-million-year-old therapsid with saber canines from the Permian of Brazil. Science 331:1603-1605.

Cisneros JC et al. 2012. Carnivorous dinocephalian from the Middle Permian of Brazil and tetrapod dispersal in Pangaea. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America 109(5):1584-1588.

Cisneros JC, Dentzien-Dias P, Francischini H. 2021. The Brazilian pareiasaur revisited. Frontiers in Ecology and Evolution 9:9:758802.

Dias EV, Barberena MC. 2001. A temnospondyl amphibian from the Rio do Rasto Formation, Upper Permian of southern Brazil. Anais da Academia Brasileira de Ciências 73(1):135-143.

Eltink E et al. 2014. The cranial morphology of the temnospondyl Australerpeton cosgriffi (Tetrapoda: Stereospondyli) from the Middle-Late Permian of Paraná Basin and the phylogenetic relationships of Rhinesuchidae. Zoological Journal of the Linnean Society 176(4):835-860.

Kern HP et al. 2021. Paleogeographic evolution of the southern Paraná Basin during the Late Permian and its relation to the Gondwanides. Sedimentary Geology 415:105808.

Pauliv VE, Dias EV, Sedor FA. 2012. A new species of Sphenacanthid (Chondrichthyes, Elasmobranchii) from the Rio do Rasto Formation (Paraná Basin), southern Brazil. Revista Brasileira de Paleontologia 15(3):243-250.

Pauliv VE et al. 2014. A new Xenacanthiformes shark (Chondrichthyes, Elasmobranchii) from the Late Paleozoic Rio do Rasto Formation (Paraná Basin), Southern Brazil. Anais da Academia Brasileira de Ciências 86(1):135-145.

Strapasson A, Pinheiro FL, Soares MB. 2015. On a new Stereospondylomorph Temnospondyl from the Middle-Late Permian of Southern Brazil. Acta Palaeontologica Polonica 60(4):843-855.

MAURÍLIO OLIVEIRA é um artista plástico carioca especializado na reconstrução de organismos e ambientes extintos. Desde 1999, atua no setor de paleontologia de vertebrados do Museu Nacional/UFRJ, no Rio de Janeiro.

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