- Peter Moon
- 22/03/2023
- 08:44

Um visitante pra lá de inusitado
Já se sabia que uma estranha flor da Mata Atlântica chamada cogumelo-de-caboclo era polinizada por gambás. Agora, pesquisadores da Unesp descobriram outro visitante totalmente inesperado, o morcego-beija-flor
E por que isto importa? É a primeira vez nas Américas que é feito o registro de um morcego pousando ao solo para lamber o néctar de flores rasteiras — um comportamento de altíssimo risco, pois ele pode virar presa.
Outro dado importante (para biólogos em geral e ecólogos em particular): o artigo também registra — pela primeira vez para a ciência — a facilitação da polinização por parte de morcegos.
O cogumelo-de-caboclo é uma planta esquisita, diria mesmo bizarra. Um parasita que se alimenta das raízes de outras plantas, o cogumelo-de-caboclo tem uma vida subterrânea, quase completamente passada longe das vistas dos animais em alguns remanescentes da Mata Atlântica paulista.
É apenas quando chega a estação seca, lá por meados do outono, que suas flores emergem da serrapilheira para poder desabrochar, sempre rente ao solo. Contudo, a não ser que você seja um botânico, jamais lhe passaria pela cabeça chamar aquilo de flores. Elas não são belas. Nem mesmo se parecem com plantas.
A inflorescência do cogumelo-de-caboclo (Scybalium fungiforme) mais parece o cruzamento improvável de um fungo com uma jaca (fungiforme, aliás, quer dizer com forma de fungo). A inflorescência tem o formato côncavo, mais ou menos o tamanho de um biscoito, e é totalmente coberta por uma grossa casca de folhas de um vermelho que de tão sanguinolento chega a ser obsceno.
Mas quem foi que disse que as inflorescências do cogumelo-de-caboclo foram feitas para agradar ao olhar dos homens?
Aos gambás, por outro lado, aquelas flores bizarras parecem ter um charme irresistível. Sob uma ótica evolutiva, poder-se-ia até mesmo dizer que cogumelos-de-caboclo e gambás foram feitos um para o outro. O gambá emprega seu focinho para rasgar a folhagem sanguinolenta que recobre a inflorescência, e assim se fartar com a copiosa quantidade de néctar que a planta lhe oferece. Ao fazê-lo, o marsupial se lambuza de pólen, que irá carregar consigo para eventualmente polinizar outros cogumelos-de-caboclo.
Toda esta história foi notícia há três anos, quando revelada à comunidade científica mundial num artigo na revista Ecology, de autoria do biólogo Felipe Amorim e pesquisadores do Instituto de Biociências da Unesp, campus Botucatu. “O nome popular de Scybalium fungiforme parece que é esse mesmo, cogumelo-de-caboclo. Mas além de não gostar, eu não uso! Prefiro chamá-lo de flor-cogumelo”, ressalva Amorim.

VISITAS ANTECEDENTES
Pelo fato das flores de S. fungiforme serem cobertas por brácteas, folhas que lembram escamas e que cobrem a inflorescência para proteger o néctar, os cientistas há muito suspeitavam que elas não poderiam ser polinizadas por um pássaro ou por uma abelha. No início dos anos 1990, a bióloga Patrícia Morellato, do Instituto de Biociências da Unesp, campus Rio Claro, chegou a aventar a hipótese de que aquela inflorescência fosse uma adaptação da planta para atrair a atenção de mamíferos, particularmente gambás.
Em 2019, o uso de câmeras com luz infravermelha permitiu finalmente flagrar o banquete noturno de um gambá, que removeu a capa avermelhada de brácteas cobrindo as flores para se refestelar com néctar — exatamente como Morellato havia previsto trinta anos antes.
Após o festim do gambá, as câmeras puderam registrar a visita de uma multidão de criaturas em busca do néctar do cogumelo-de-caboclo, como ratos, cuícas, iraras, quatis e esquilos.
Participação especial teve uma ave, o tiê-preto (Tachyphonus coronatus), que com o uso de seu bico se mostrou ser o único animal — além dos gambás — capaz de remover por conta própria a capa da inflorescência do cogumelo-de-caboclo. “O tiê-preto consegue remover as folhinhas para expor as flores da inflorescência. Mas leva vários dias para fazê-lo, enquanto aos gambás bastam em apenas alguns segundos para ‘descamar’ a inflorescência”, explica Amorim.
Há três anos, a predita revelação da polinização do cogumelo-de-caboclo por gambás rendeu uma bela repercussão pelo Brasil e mundo afora. Aquele primeiro artigo científico parecia conter o resumo da ópera das estratégias adaptativas de S. fungiforme… só que não. A planta ainda reservava uma surpresa. A maior de todas.

SURPRESA QUIRÓPTERA
Em dezembro de 2022, saiu na Ecology um novo artigo do mesmo grupo de pesquisa focalizando a mesma planta, e que revelou a participação de um personagem para lá de inesperado: o morcego-beija-flor (Glossophaga soricina).
“Conseguimos flagrar em diversas oportunidades morcegos adejando a planta feito colibris, enquanto lambiam o néctar e o pólen. E o ainda mais surpreendente foi que os morcegos chegaram mesmo a pousar sobre a flor, algo inédito no Novo Mundo, e também perigosíssimo, uma vez que tal comportamento aumenta e muito as chances do morcego virar presa fácil para animais de solo, como o próprio gambá”, diz Amorim. O morcego só consegue visitar o cogumelo-de-caboclo depois que gambás e tiês abriram a planta.
Os registros foram realizados entre 2020 e 2022, por meio de câmeras infravermelhas de acionamento automático, em duas áreas em Botucatu, e uma terceira a 160 quilômetros dali, na Reserva Biológica da Serra do Japi.
Nos três locais foram registradas visitas ao cogumelo-de-caboclo de morcegos-beija-flor, tiês-pretos e duas espécies de marsupiais, o gambá-de-orelha-preta (Didelphis aurita) e o gambá-de-orelha-branca (D. albiventris). Os morcegos-beija-flor foram os visitantes mais frequentes, por exemplo, com 76% das visitas registradas na Serra do Japi.
Ao todo, os pesquisadores já registraram mais de 4 mil horas de vídeos, equivalente a quase 170 dias ou mais de cinco meses de gravação ininterrupta (uau!!!).

REGISTRO ÚNICO
De acordo com Amorim, jamais havia sido registrado entre os morcegos das Américas um comportamento semelhante ao presenciado com o morcego-beija-flor, que agora se sabe consegue visitar e polinizar uma planta com flores ao nível de solo.
Para não dizer que se trata de um comportamento único entre os morcegos, o único exemplo conhecido até então era o do morcego-de-cauda-curta da Nova Zelândia (Mystacina tuberculata), capaz de visitar e polinizar a rosa-da-floresta (Dactylanthus taylorii).
“O achado de uma espécie de morcego do Novo Mundo mostrando o comportamento inesperado de visitar uma planta com floração rasteira parece ser um paralelo único entre o Brasil e a Nova Zelândia”, diz Amorim.
Outra semelhança entre o comportamento dos morceguinhos nectarívoros brasileiros e neozelandeses é a sua particular predileção por flores bizarras, que em nada lembram aquilo que convencionalmente consideramos ser uma flor. Assim como a inflorescência do cogumelo-de-caboclo lembra um fungo ensanguentado, chamar a rosa-da-floresta de rosa é um baita exercício de imaginação, uma vez que a sua inflorescência mais parece um repolho envolto por uma alcachofra, ambos aparentando avançado estado de putrefação.
Talvez não seja obra do acaso. A história evolutiva está repleta de exemplos de adaptações semelhantes desenvolvidas independentemente por espécies diferentes para resolver problemas parecidos.


O MAIS IMPORTANTE FICOU PARA O FINAL…
O primeiro registro nas Américas de morcegos se alimentando de néctar em flores ao nível do solo é inusitado e importante. Ainda assim, como explica Amorim, o aspecto cientificamente mais significativo do artigo tem a ver com a facilitação, um processo ecológico pelo qual uma espécie tem um efeito positivo (direto ou indireto) sobre a aptidão de outra.
Os efeitos facilitadores têm sido amplamente estudados sob a perspectiva de plantas que compartilham polinizadores comuns, de modo que uma espécie de planta aumenta a visitação de polinizadores e a reprodução de outra.
Por outro lado, como se lê no artigo de 2022, a facilitação foi raramente observada sob a perspectiva de animais polinizadores que compartilham uma espécie de planta em comum.
“No trabalho de 2020, nós ainda não fazíamos ideia da quantidade de animais visitavam a flor-cogumelo. Cada animal novo que aparecia nos vídeos, como cuícas, iraras, quatis e esquilos, era uma grande surpresa!”, explica o biólogo. “Naquela época, nós apenas aventávamos a hipótese de que os gambás removeriam as brácteas cobrindo a inflorescência. A descoberta do mecanismo de facilitação entre polinizadores só ocorreu quando, em 2021, conseguimos ver que os gambás, de fato, eram os responsáveis pela exposição das flores!”
No entanto — e esta é a maior novidade do novo trabalho — jamais havia sido registrada nenhuma forma de facilitação entre animais polinizadores que incluísse mamíferos voadores, ou seja, morcegos. “Quando digo jamais, é jamais mesmo. É a primeira vez que isto é presenciado. Registramos centenas de visitas de morcegos! No contexto ecológico, isso é grandioso!”, afirma Amorim.
O morcego-beija-flor e os demais visitantes do cogumelo-de-caboclo, só podem visitar suas flores e acessar o seu abundante néctar depois que gambás ou tiês-pretos terem removido previamente a capa que cobre a inflorescência.
Assim, tanto os gambás quanto os tiês-pretos, indiretamente, beneficiam os morcegos, proporcionando-lhes uma oportunidade de nicho durante a estação seca na Mata Atlântica, quando outros recursos alimentares são escassos.
Uma vez alimentados de néctar e impregnados de pólen, os morceguinhos partem em busca de novas inflorescências espalhadas pelo chão da floresta. Assim, os morceguinhos fertilizam as flores desta planta bizarra, dando continuidade ao ciclo. E a vida continua…
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2 comentários em “Um visitante pra lá de inusitado”
Muitíssimo obrigado pela excelente matéria, Peter!
Felipe, eu é que lhe agradeço pelo excelente trabalho de pesquisa que você e sua equipe vem fazendo. Parabéns! E conte comigo sempre.