morcego-beija-flor

Um visitante pra lá de inusitado​

Já se sabia que uma estranha flor da Mata Atlântica chamada cogumelo-de-caboclo era polinizada por gambás. Agora, pesquisadores da Unesp descobriram outro visitante totalmente inesperado, o morcego-beija-flor

E por que isto importa? É a primeira vez nas Américas que é feito o registro de um morcego pousando ao solo para lamber o néctar de flores rasteiras — um comportamento de altíssimo risco, pois ele pode virar presa. 

Outro dado importante (para biólogos em geral e ecólogos em particular): o artigo também registra — pela primeira vez para a ciência — a facilitação da polinização por parte de morcegos.

O cogumelo-de-caboclo é uma planta esquisita, diria mesmo bizarra. Um parasita que se alimenta das raízes de outras plantas, o cogumelo-de-caboclo tem uma vida subterrânea, quase completamente passada longe das vistas dos animais em alguns remanescentes da Mata Atlântica paulista. 

É apenas quando chega a estação seca, lá por meados do outono, que suas flores emergem da serrapilheira para poder desabrochar, sempre rente ao solo. Contudo, a não ser que você seja um botânico, jamais lhe passaria pela cabeça chamar aquilo de flores. Elas não são belas. Nem mesmo se parecem com plantas. 

A inflorescência do cogumelo-de-caboclo (Scybalium fungiforme) mais parece o cruzamento improvável de um fungo com uma jaca (fungiforme, aliás, quer dizer com forma de fungo). A inflorescência tem o formato côncavo, mais ou menos o tamanho de um biscoito, e é totalmente coberta por uma grossa casca de folhas de um vermelho que de tão sanguinolento chega a ser obsceno. 

Mas quem foi que disse que as inflorescências do cogumelo-de-caboclo foram feitas para agradar ao olhar dos homens? 

Aos gambás, por outro lado, aquelas flores bizarras parecem ter um charme irresistível. Sob uma ótica evolutiva, poder-se-ia até mesmo dizer que cogumelos-de-caboclo e gambás foram feitos um para o outro. O gambá emprega seu focinho para rasgar a folhagem sanguinolenta que recobre a inflorescência, e assim se fartar com a copiosa quantidade de néctar que a planta lhe oferece. Ao fazê-lo, o marsupial se lambuza de pólen, que irá carregar consigo para eventualmente polinizar outros cogumelos-de-caboclo.

Toda esta história foi notícia há três anos, quando revelada à comunidade científica mundial num artigo na revista Ecology, de autoria do biólogo Felipe Amorim e pesquisadores do Instituto de Biociências da Unesp, campus Botucatu. “O nome popular de Scybalium fungiforme parece que é esse mesmo, cogumelo-de-caboclo. Mas além de não gostar, eu não uso! Prefiro chamá-lo de flor-cogumelo”, ressalva Amorim.

Gambá se alimenta do néctar do cogumelo-de-caboclo após ter arrancado a capa que protege a inflorescência


VISITAS ANTECEDENTES

Pelo fato das flores de S. fungiforme serem cobertas por brácteas, folhas que lembram escamas e que cobrem a inflorescência para proteger o néctar, os cientistas há muito suspeitavam que elas não poderiam ser polinizadas por um pássaro ou por uma abelha. No início dos anos 1990, a bióloga Patrícia Morellato, do Instituto de Biociências da Unesp, campus Rio Claro, chegou a aventar a hipótese de que aquela inflorescência fosse uma adaptação da planta para atrair a atenção de mamíferos, particularmente gambás. 

Em 2019, o uso de câmeras com luz infravermelha permitiu finalmente flagrar o banquete noturno de um gambá, que removeu a capa avermelhada de brácteas cobrindo as flores para se refestelar com néctar — exatamente como Morellato havia previsto trinta anos antes.

Após o festim do gambá, as câmeras puderam registrar a visita de uma multidão de criaturas em busca do néctar do cogumelo-de-caboclo, como ratos, cuícas, iraras, quatis e esquilos. 

Participação especial teve uma ave, o tiê-preto (Tachyphonus coronatus), que com o uso de seu bico se mostrou ser o único animal — além dos gambás — capaz de remover por conta própria a capa da inflorescência do cogumelo-de-caboclo. “O tiê-preto consegue remover as folhinhas para expor as flores da inflorescência. Mas leva vários dias para fazê-lo, enquanto aos gambás bastam em apenas alguns segundos para ‘descamar’ a inflorescência”, explica Amorim.

Há três anos, a predita revelação da polinização do cogumelo-de-caboclo por gambás rendeu uma bela repercussão pelo Brasil e mundo afora. Aquele primeiro artigo científico parecia conter o resumo da ópera das estratégias adaptativas de S. fungiforme… só que não. A planta ainda reservava uma surpresa. A maior de todas.

O tiê-preto é a única criatura, além dos gambás, que consegue abrir a inflorescência do cogumelo-de-caboclo

 

SURPRESA QUIRÓPTERA

Em dezembro de 2022, saiu na Ecology um novo artigo do mesmo grupo de pesquisa focalizando a mesma planta, e que revelou a participação de um personagem para lá de inesperado: o morcego-beija-flor (Glossophaga soricina).

“Conseguimos flagrar em diversas oportunidades morcegos adejando a planta feito colibris, enquanto lambiam o néctar e o pólen. E o ainda mais surpreendente foi que os morcegos chegaram mesmo a pousar sobre a flor, algo inédito no Novo Mundo, e também perigosíssimo, uma vez que tal comportamento aumenta e muito as chances do morcego virar presa fácil para animais de solo, como o próprio gambá”, diz Amorim. O morcego só consegue visitar o cogumelo-de-caboclo depois que gambás e tiês abriram a planta. 

Os registros foram realizados entre 2020 e 2022, por meio de câmeras infravermelhas de acionamento automático, em duas áreas em Botucatu, e uma terceira a 160 quilômetros dali, na Reserva Biológica da Serra do Japi. 

Nos três locais foram registradas visitas ao cogumelo-de-caboclo de morcegos-beija-flor, tiês-pretos e duas espécies de marsupiais, o gambá-de-orelha-preta (Didelphis aurita) e o gambá-de-orelha-branca (D. albiventris). Os morcegos-beija-flor foram os visitantes mais frequentes, por exemplo, com 76% das visitas registradas na Serra do Japi.

Ao todo, os pesquisadores já registraram mais de 4 mil horas de vídeos, equivalente a quase 170 dias ou mais de cinco meses de gravação ininterrupta (uau!!!).

Morcegos-beija-flor pairam sobre um cogumelo-de-caboclo já aberto e se alimentam do néctar de sua inflorescência. Ao fazê-lo, os mamíferos alados se impregnam de pólen, que polinizará outros cogumelos-de-caboclo quando os morcegos forem visitá-los


REGISTRO ÚNICO

De acordo com Amorim, jamais havia sido registrado entre os morcegos das Américas um comportamento semelhante ao presenciado com o morcego-beija-flor, que agora se sabe consegue visitar e polinizar uma planta com flores ao nível de solo. 

Para não dizer que se trata de um comportamento único entre os morcegos, o único exemplo conhecido até então era o do morcego-de-cauda-curta da Nova Zelândia (Mystacina tuberculata), capaz de visitar e polinizar a rosa-da-floresta (Dactylanthus taylorii).

“O achado de uma espécie de morcego do Novo Mundo mostrando o comportamento inesperado de visitar uma planta com floração rasteira parece ser um paralelo único entre o Brasil e a Nova Zelândia”, diz Amorim.

Outra semelhança entre o comportamento dos morceguinhos nectarívoros brasileiros e neozelandeses é a sua particular predileção por flores bizarras, que em nada lembram aquilo que convencionalmente consideramos ser uma flor. Assim como a inflorescência do cogumelo-de-caboclo lembra um fungo ensanguentado, chamar a rosa-da-floresta de rosa é um baita exercício de imaginação, uma vez que a sua inflorescência mais parece um repolho envolto por uma alcachofra, ambos aparentando avançado estado de putrefação.

Talvez não seja obra do acaso. A história evolutiva está repleta de exemplos de adaptações semelhantes desenvolvidas independentemente por espécies diferentes para resolver problemas parecidos.

Outra flor-de-morcego — além do exemplo brasileiro, o morcego-de-cauda-curta da Nova Zelândia (Mystacina tuberculata) é o único outro caso conhecido de um morcego que visita uma flor de solo. Trata-se da rosa-da-floresta (Dactylanthus taylorii), cuja inflorescência mais parece um repolho em putrefação, como se vê na imagem abaixo

 

O MAIS IMPORTANTE FICOU PARA O FINAL…

O primeiro registro nas Américas de morcegos se alimentando de néctar em flores ao nível do solo é inusitado e importante. Ainda assim, como explica Amorim, o aspecto cientificamente mais significativo do artigo tem a ver com a facilitação, um processo ecológico pelo qual uma espécie tem um efeito positivo (direto ou indireto) sobre a aptidão de outra. 

Os efeitos facilitadores têm sido amplamente estudados sob a perspectiva de plantas que compartilham polinizadores comuns, de modo que uma espécie de planta aumenta a visitação de polinizadores e a reprodução de outra.

Por outro lado, como se lê no artigo de 2022, a facilitação foi raramente observada sob a perspectiva de animais polinizadores que compartilham uma espécie de planta em comum.

“No trabalho de 2020, nós ainda não fazíamos ideia da quantidade de animais visitavam a flor-cogumelo. Cada animal novo que aparecia nos vídeos, como cuícas, iraras, quatis e esquilos, era uma grande surpresa!”, explica o biólogo. “Naquela época, nós apenas aventávamos a hipótese de que os gambás removeriam as brácteas cobrindo a inflorescência. A descoberta do mecanismo de facilitação entre polinizadores só ocorreu quando, em 2021, conseguimos ver que os gambás, de fato, eram os responsáveis pela exposição das flores!”

No entanto — e esta é a maior novidade do novo trabalho — jamais havia sido registrada nenhuma forma de facilitação entre animais polinizadores que incluísse mamíferos voadores, ou seja, morcegos. “Quando digo jamais, é jamais mesmo. É a primeira vez que isto é presenciado. Registramos centenas de visitas de morcegos! No contexto ecológico, isso é grandioso!”, afirma Amorim. 

O morcego-beija-flor e os demais visitantes do cogumelo-de-caboclo, só podem visitar suas flores e acessar o seu abundante néctar depois que gambás ou tiês-pretos terem removido previamente a capa que cobre a inflorescência. 

Assim, tanto os gambás quanto os tiês-pretos, indiretamente, beneficiam os morcegos, proporcionando-lhes uma oportunidade de nicho durante a estação seca na Mata Atlântica, quando outros recursos alimentares são escassos. 

Uma vez alimentados de néctar e impregnados de pólen, os morceguinhos partem em busca de novas inflorescências espalhadas pelo chão da floresta. Assim, os morceguinhos fertilizam as flores desta planta bizarra, dando continuidade ao ciclo. E a vida continua…

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