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Falcão peregrino preda ararinha-da-Patagônia, em Río Negro, Argentina, 10/01/2019 (crédito: Carlos Goulart)

FALCÕES-PEREGRINOS NO BRASIL

Biólogas usam 1.668 avistamentos registrados no site WikiAves para estudar a história natural do falcão-peregrino no Brasil

“As pessoas costumam andar pela Avenida Paulista sempre apressadas. Muitas ficam olhando para os lados, aflitas com o horário, com o trânsito, ou com a possibilidade de alguém levar seu celular, ou sua bolsa. Ninguém tem tempo para parar um instante e olhar o céu. Mas, se você fizer isso, perceberá que tem muito coisa acontecendo lá em cima. Se tiver sorte, poderá observar, por exemplo, falcões-peregrinos caçando pombos. É uma visão inesquecível”, conta a bióloga Erika Hingst-Zaher, do Museu Biológico do Instituto Butantan, em São Paulo.

No final de 2019, a então estudante de graduação em biologia Louise Mamedio Schneider, do Instituto de Biociências da USP, procurou Erika para que esta a orientasse no seu tema de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Louise queria trabalhar com o comportamento de primatas. Erika sugeriu então que a estudante trabalhasse com os saguis urbanos que podem ser encontrados no parque do Instituto Butantan. Louise gostou da ideia e tratou de arregaçar as mangas.

Mas aí, no início de 2020, a pandemia desabou sobre as nossas vidas — e todo o mundo passou a viver confinado. De uma hora para a outra, Louise perdeu o acesso aos seus saguis urbanos. Para não deixar a estudante na mão, Erika matutou sobre como permitir que Louise conseguisse prosseguir seu estudo sobre o comportamento de animais de forma remota. “Que bicho eu posso propor, que seja tão interessante quanto um primata, e que tenha uma questão que possa ser estudada e respondida sem a aluna ter que sair de casa? Tem que ser um bicho sexy! Mas qual?”, repete Erika.

Confesso que achei luminar a sugestão encontrada por Erika. Os macacos cederam lugar a uma ave de rapina, o falcão-peregrino. “O falcão-peregrino é sexy. É uma espécia icônica de ave, um símbolo da luta conservacionista”.

“Não sou ornitóloga”, diz Erika, “mas sei que há diversos pesquisadores estudando o comportamento de aves unicamente a partir dos avistamentos listados no portal de observação de aves e ciência cidadã WikiAvesEntão sugeri à Louise que usasse os dados daquele site de passarinheiros para monitorar a migração anual dos falcões-peregrinos”. O TCC de Louise, com o inspirado título de Falcão-peregrino Falco peregrinus no Brasil: história natural pelas lentes da ciência cidadã, ficou tão legal que acabou publicado na revista Ornitología Neotropical.

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Falcões-peregrinos no Brasil - Dois peregrinos nos céus de Boa Vista, Roraima (crédito: Marcelo Telles)

 

SÍMBOLO CONSERVACIONISTA

O falcão-peregrino é um dos ícones do mundo alado. É um símbolo da luta conservacionista. Eles quase foram extintos em meados do século 20, na Europa e na América do Norte, devido ao uso de pesticidas como o DDT e seus efeitos na reprodução. O DDT usado na agricultura acabava circulando na cadeia alimentar. Os insetos contaminados com DDT acabavam virando presa das aves da rapina. 

Uma vez consumido pelos peregrinos e também pelas águias-de-cabeça-branca (a espécie símbolo nacional dos Estados Unidos), o DDT acabava acumulado na casca de seus ovos, tornando-os muito frágeis e quebradiços. Os ovos começaram a quebrar com facilidade. Em suma, o DDT na agricultura estava matando os embriões dos futuros peregrinos e águias ainda dentro da casca do ovo. Com a campanha conservacionista para proibir o uso do DDT, que teve como seu maior símbolo o livro Primavera Silenciosa (1962), da bióloga Rachel Carson, ambas as espécies saíram da zona de risco de extinção e puderam se recuperar.

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Falcões-peregrinos no Brasil - Peregrino captura bem-te-vi no Guarujá, São Paulo,18/12/2022 (crédito: Leonardo Casadei)

 

CAÇADA URBANA

O peregrino também é super conhecido como o recordista mundial de velocidade entre todos os animais. Para mergulhar em direção de sua presa, o peregrino pode atingir vertiginosos 390 quilômetros por hora, ou 108 metros por segundo. Isso significa que, durante seu mergulho, a ave pode voar à razão de mais de um quarteirão (de 100 metros) por segundo.

Imagine agora o exemplo descrito por Erika. Você está caminhando no centro de uma grande cidade brasileira e vê nos céus um bando de pombos. Lá longe, centenas de metros acima dos pombos, paira um peregrino. Com seu olhar aguçadíssimo, ele escolhe sua vítima e mergulha, encurtando a distância entre predador e presa à razão de mais de 100 metros para cada segundo de voo. A pomba, coitada, só enxerga o falcão se aproximando quando já é tarde demais — isso quando enxerga.

O peregrino não é um nenhum físico, mas para matar o pombo ele recorre ao uso da energia cinética. O temido fuzil AR-15, a arma de preferência dos malucos responsáveis pelos massacres que ocorrem quase que semanalmente nos Estados Unidos, dispara balas de 4 gramas a uma velocidade de 850 metros por segundo. A energia cinética do projétil na hora do impacto é de devastadores 1.445 joules. 

O projétil do AR-15 é oito vezes mais rápido que o mergulho do peregrino, ave de rapina de cerca de 1 quilo, ou seja, 250 vezes mais pesada que o projétil do AR-15. Fazendo os cálculos, descobre-se que a energia cinética do peregrino no momento do impacto com o pombo é 5.800 Joules… quatro vezes superior à bala do AR-15.

Em seu ataque, o peregrino emprega a devastadora energia cinética à sua disposição para esmagar o pombo, como se fosse uma locomotiva aérea desgovernada. O pombo não tem a mínima chance, nem de fugir do peregrino, muito menos de sobreviver ao ataque.

Apesar de tanta rapidez e brutalidade, o ataque do peregrino não deixa de ser um balé acrobático tridimensional — para nós observadores, que fique bem claro, jamais para os pombos! Observar tal coreografia aérea é um privilégio. Talvez esta seja a razão pela qual centenas de passarinheiros de todo o Brasil gastem um tempo enorme observando falcões, registrando o momento dos ataques, e publicando suas belíssimas imagens e as coordenadas de cada registro na página dos falcões-peregrinos no WikiAves. Até 2021, quando Louise fez o levantamento dos avistamentos para a sua pesquisa, o WikiAves listava mais de 2.300 registros (em 1.668 fotografias) de peregrinos no Brasil. Hoje, os registros já são 3.124.

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Falcões-peregrinos no Brasil - Peregrino no beiral da janela em Santa Maria, RS, 20/12/2013 (crédito: Pedro Coser)
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Mapa com a localização dos avistamento de peregrinos nos diversos biomas brasileiros, em WikiAves


MIGRAÇÃO ANUAL

Como seu nome indica, o Falco peregrinus passa a vida migrando entre os dois hemisférios. Com a chegada do outono no hemisfério norte, os peregrinos decolam de suas áreas de reprodução acima do paralelo 70º N, nas beiradas do Ártico. As aves fogem do rigoroso inverno que se aproxima. Partem em sua busca anual de refúgio no calor no sul do planeta.

Dependendo da subespécie (são 19), os peregrinos começam sua migração na Escandinávia, na Sibéria ou no Extremo Oriente, com destino à África do Sul, à Índia e ao Sudeste Asiático. No caso das Américas, a rota migratória parte das áreas de reprodução espalhadas pelo Alasca, Ártico canadense e Groenlândia. É o início de uma migração que pode levar até sete meses, consumidos no percurso de mais de 12 mil quilômetros até o destino final: as áreas de invernada na Patagônia chilena e argentina.

“O Brasil é uma importante área de invernada para o falcão-peregrino, especificamente para as subespécies tundrius e anatum”, escreve Louise Schneider. Utilizando dados do WikiAves, ela pôde analisar aspectos da história natural da espécie, incluindo seu comportamento migratório, distribuição geográfica, dieta e interações ecológicas. 

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Cleptoparasitismo - Dois peregrinos disputam uma presa (crédito: Alexander Lees)

 

NOS CÉUS DO BRASIL

Segundo o artigo científico, os falcões-peregrinos no Brasil podem ser avistados entre outubro e abril. “Nossos dados sugerem que adultos chegam até um mês antes dos juvenis. Foram registrados indivíduos em todos os 26 estados. Não observamos nenhuma diferença significava na distribuição geográfica devido à subespécie ou faixa etária. Porém, detectamos uma aparente escassez de peregrinos na região Centro-Oeste”. 

Entre as 200 imagens de peregrinos se alimentando, Louise registrou a ocorrência de comportamento agonístico, que é qualquer comportamento social relacionado à luta. Ela também identificou a ocorrência de cleptoparasitismo, forma de alimentação em que um animal deliberadamente tira a comida de outro.

Em sua passagem anual pelos céus brasileiros, os peregrinos se alimentam majoritariamente de pombos (Columbiformes) e Charadriiformes (pronuncia-se CARAdriiformes), ordem de aves marinhas que inclui as gaivotas, as batuíras e os maçaricos. 

“Qualquer um pode andar pela Paulista e observar um peregrino caçando um pombo”, repete Erika. Não sei vocês, mas estou louco de vontade de fazer isso no próximo final de semana. Bora lá?

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A falcoaria é um esporte nobre e secular na península arábica (creative commons)

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