- Peter Moon
- 03/05/2023
- 08:50

60 MILHÕES DE ANOS DAS TARTARUGAS-MARINHAS
Tartaruga-de-couro e tartaruga-verde têm DNA quase igual, apesar dos 60 milhões de anos de história evolutiva que separam as duas espécies
As tartarugas-marinhas são as nobres representantes de linhagens bastante longevas, que trocaram a terra pelos oceanos há mais de 120 milhões de anos. Os ancestrais das tartarugas-marinhas sobreviviam em mares infestados por mosassauros, os monstros do tamanho de ônibus do filme Mundo Jurássico. As tartarugas-marinhas também testemunharam a separação da América do Sul da África para a abertura do Atlântico Sul, há 100 milhões de anos.
100 milhões de anos é um bocado de tempo. Surpreende portanto descobrir que o DNA das tartarugas-marinhas pouco se alterou durante todo este tempo. Esta é a principal constatação do mais aprofundado estudo genômico já realizado com o DNA destes quelônios, e que fornece indícios surpreendentes sobre a história evolutiva das tartarugas-marinhas.
“Até o momento, todos os estudos realizados com genoma de tartarugas — e o mesmo vale para quase todos os animais e plantas — foram produzidos a partir de amostras parciais de DNA.. e com resultados igualmente parciais. Foi assim por uma razão bem simples: era caro demais produzir mapeamentos genômicos completos, os chamados genomas de alta qualidade”, explica a genomicista carioca Camila Mazzoni, do Laboratório de Genética Evolutiva do Instituto Leibniz para Pesquisa em Zoologia e Vida Selvagem – Leibniz-IZW, em Berlim.
Segundo Camila, a limitação financeira fez com que os estudos moleculares de alta qualidade ficassem por muito tempo restritos às espécies de valor econômico, como gado, trigo, frango e laranja. Mas a contínua evolução da tecnologia acabou por reduzir os custos e viabilizar a produção em massa de genomas de alta qualidade.
Camila é uma das duas pesquisadoras responsáveis pelo primeiro mapeamento de alta qualidade dos genomas da tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea) e da tartaruga-verde (Chelonia mydas), publicado em fevereiro na revista americana PNAS – Procedimentos da Academia Nacional de Ciências.

“É o primeiro artigo de um estudo muito grande, no qual vamos montar genomas de referência de altíssima qualidade de todas as sete espécies de tartarugas marinhas”, explica.
Entre os 47 autores do artigo, além de Camila, há outras quatro pesquisadoras brasileiras: Larissa Souza Arantes e Marcela Uliano-Silva, ambas no Leibniz-IZW, e, no Instituto de Biologia da Unicamp, Mariana Freitas Nery e Elisa Ramos.
Demorei quase vinte dias para conseguir uma brecha na agenda desta pesquisadora brasileira. Vivendo há 13 anos na Alemanha, Camila Mazzoni atendeu a minha call num início de noite gelada em Berlim, enquanto seu filhinho, o Noah, creio que com uns nove anos, andava de pijama de um lado para o outro pelo seu apartamento.
Eu não fazia ideia de como a vida de Camila é atribulada. Ela atualmente acumula a pesquisa no Leibniz-IZW com a presidência do comitê executivo do Atlas Europeu do Genoma de Referência, um grande consórcio cuja missão é pra lá de ambiciosa: simplesmente produzir genomas de alta qualidade de TODAS as 200 mil espécies da flora e da fauna da Europa.
É neste contexto que se insere o estudo dos genomas da tartaruga-de-couro e da tartaruga-verde.

JABUTIS, CÁGADOS E TARTARUGAS
Estima-se que as tartarugas descendem de antigos répteis terrestres sem casco, aparentados dos escamados (os lagartos e as serpentes), que viveram há mais de 260 milhões de anos, no final do período Permiano. O registro fóssil também revela que as primeiras tartarugas de verdade, pois já dotadas de casco, existiam há 220 milhões de anos, no final do período Triássico, tendo sido contemporâneas dos primeiros dinossauros.
O grande grupo Testudinata congrega as três formas atuais e todas as formas extintas de quelônios, quais sejam os jabutis terrestres, os cágados de água-doce, e as tartarugas-marinhas. Durante a primeira metade do longo reinado dos quelônios, só existiam jabutis e cágados. Mas, há mais de 120 milhões de anos, um grupo de cágados abandonou os continentes para se adaptar à vida oceânica, fundando assim a linhagem das tartarugas-marinhas.
Neste sentido, a Colômbia e o Brasil são afortunados, pois aqui foram encontradas duas das mais antigas tartarugas-marinhas do registro fóssil mundial. A colombiana Desmatochelys padillai viveu há 120 milhões de anos. A brasileira Santanachelys gaffneyi é um pouco mais recente. Seu fóssil de 115 milhões de anos, depositado num museu no Japão, foi achado nas minas de calcário da Chapada do Araripe, encravada entre o Ceará e Pernambuco — de cujas rochas também saiu outra tartaruga marinha, Araripemys barretoi (além de alguns cágados).
Interessante notar como a tartaruga-de-couro guarda semelhanças com aquelas formas marinhas extintas. Desmatochelys e Santanachelys eram bem grandes. Com cerca de dois metros de comprimento, elas tinham tamanho similar ao da tartaruga-de-couro. Esta pode chegar a pesar até 500 quilos. É a maior entre as 348 espécies viventes do grupo Testudinata.


FÓSSEIS… E QUASE FÓSSEIS
A similaridade de tamanho entre as tartarugas-marinhas extintas e a nossa contemporânea tartaruga-de-couro não ocorre por acaso. “As tartarugas têm uma taxa evolutiva muito lenta”, explica a doutoranda Elisa Ramos, a terceira autora do artigo científico.
Veja o exemplo das linhagens da tartaruga-de-couro e das outras seis espécies de tartarugas marinhas viventes. O estudo sugere que as duas linhagens tenham divergido de um ancestral comum há cerca de 60 milhões de anos, portanto logo após a queda do meteoro que extinguiu os dinossauros não-avianos (há 66 milhões de anos), mas poupou os dinossauros avianos, que chamamos de aves. “Apesar de 60 milhões de anos de separação, os genomas da tartaruga-de-couro e da tartaruga-verde são 95% semelhantes”, diz Elisa.
De acordo com Camila Mazzoni, “os dois genomas são muito parecidos. O DNA de ambas têm 2,1 bilhões de bases, organizadas em 28 pares de cromossomos. É tudo praticamente igual. É quase como se elas tivessem parado no tempo”.
Mas o tempo não para.
Decorridos 60 milhões de anos, seria de esperar que a semelhança entre os genomas da tartaruga-de-couro e da tartaruga-verde fosse bem menor. Para entender o porquê, tome o exemplo dos mamíferos.
O ancestral comum dos mamíferos placentários, outro sobrevivente da grande extinção do Cretáceo, fundou uma linhagem da qual hoje fazem parte cetáceos, morcegos, primatas, roedores e carnívoros, entre outros. Passados 60 milhões de anos, o ser humano compartilha 90% dos mesmos genes dos felinos, 82% dos cães, 80% das vacas e 67% dos camundongos.
O genoma humano é ainda 98,5% semelhante ao do chimpanzé, nosso parente mais próximo, com o qual partilhamos um ancestral comum que viveu há apenas sete milhões de anos.
Apesar de um tempo de divergência quase dez vezes maior, o genoma das tartarugas-marinhas ainda é 95% semelhante. Justamente devido a sua taxa evolutiva lenta. Noutras palavras, os pesquisadores dizem que o genoma das tartarugas-marinhas é extremamente conservador.
Apesar da transposição das eras, permeadas pela separação dos continentes, incontáveis de mudanças climáticas e a superação de sabe-se lá quantas barreiras adaptativas, seu DNA pouco mudou. Mas qual seria a razão para este conservadorismo exacerbado? Quais foram as porções do genoma que se alteraram, e por quê?

BASTANTE SEMELHANTES, AINDA ASSIM MUITO DIFERENTES
De acordo a genomicista do Leibniz-IZW, de um lado as tartarugas-de-couro, e do outro as demais espécies de tartarugas-marinhas possuem importantes diferenças morfológicas, ecológicas e comportamentais. A investigação de seu DNA fornece pistas sobre quais adaptações elas operaram para sobreviver por 60 milhões de anos.
“A tartaruga-de-couro é muito grande, tem casco mole, vive em alto mar, em águas mais frias, e se alimenta principalmente de águas-vivas. Já as outras seis espécies de tartarugas-marinhas têm casco duro, tamanhos variados, vivem em águas tropicais e subtropicais, próximas ao litoral, com diferentes tipos de alimentação. As tartarugas-verdes adultas, por exemplo, se alimentam principalmente de algas”, diz Camila.
Por habitarem águas com maior biodiversidade e maior oferta de alimento, as tartarugas-verdes sempre tiveram populações muito maiores, cujo tamanho variou ao longo do tempo. Por seu lado, as tartarugas-de-couro sempre tiveram populações pequenas, porém estáveis.
Segundo Camila, duas regiões se destacam no genoma da tartaruga-verde, diferenciando-o do DNA da tartaruga-de-couro. São as regiões dos genes que controlam o sistema olfativo e dos genes responsáveis pelo sistema imune.
“Quando se pensa no ambiente habitado pelas tartarugas-verdes, isso faz todo o sentido”. As tartarugas-verdes vivem em mais águas rasas, às margens dos continentes, onde há grande variabilidade de ecossistemas marinhos, grande oferta de alimentos e maior diversidade de espécies que produzem uma grande variedade de odores. Deste modo, pode-se supor que as tartarugas-verdes dependem sobremaneira do sentido do olfato para achar alimento e encontrar parceiros para acasalar. O olfato também parece ser importante para as tartarugas-verdes encontrarem seu local de nascimento, aonde elas voltam quase anualmente para se reproduzir.
Similarmente, explica Camila, o maior desenvolvimento do sistema imune das tartarugas-verdes é decorrência direta do meio ambiente onde vivem, as águas tropicais do planeta, repletas de microrganismos e patógenos — cuja presença é um desafio e um estímulo constante ao sistema imune das tartarugas-verdes.

BAIXAS POPULAÇÕES
No caso da tartaruga-de-couro, uma vida solitária passada em mar aberto impõe bem menos barreiras à sobrevivência do que as barreiras adaptativas impostas sobre a tartaruga-verde.
O meio ambiente principal da tartaruga-de-couro é o mar aberto, um imenso deserto aquático onde a biodiversidade é baixíssima. Isto se reflete tanto em termos da baixa oferta de alimento quanto na presença de poucos predadores — basicamente os grandes tubarões.
A baixa biodiversidade do mar aberto também se reflete numa menor diversidade de patógenos, oferecendo desafios menores ao sistema imune da tartaruga-de-couro. Daí se entende porque o DNA da tartaruga-de-couro apresenta variabilidade genética dez vezes menor do que o DNA da tartaruga-verde.
Reza a biologia evolutiva que, quanto maior é o fundo genético de cada espécie, maior é a variabilidade de seus genes, o que se traduz em uma maior quantidade de genes em potencial que possam ajudar na adaptação dos indivíduos ao enfrentamento de alterações ambientais.
De acordo com Camila, por muito tempo se acreditou que, pelo fato das populações de tartarugas-de-couro serem pequenas, sua diversidade genética seria baixa, e, portanto, a espécie corresse elevado risco de extinção.
Seguindo este mesmo raciocínio, acreditava-se que as populações atuais de tartarugas-de-couro fossem reduções de populações maiores que existiram no passado. Menos indivíduos significam menos genes, menores chances de defesa e maior chance de extinção.
“Mas agora com as informações fornecidas pelo genoma, descobrimos que as diferentes populações da tartaruga-de-couro sempre foram pequenas”, provavelmente desde o tempo dos dinossauros, explica Camila.
“Quando a gente olha para o passado, percebe que a tartaruga-de-couro provavelmente sempre teve variabilidade genética baixa. Apesar disso, ela tem sobrevivido muito bem ao longo de 60 milhões de anos. Logo, a gente conclui que o grande problema que as tartarugas-de-couro enfrentam hoje em dia não é a baixa variabilidade genética, mas a pressão antropogênica”, ou seja, a ameaça do bicho homem.

GARGALOS GENÉTICOS
No caso da tartaruga-verde, apesar de suas populações serem maiores, o que os genomicistas detectaram foi uma baixíssima variabilidade em algumas populações específicas, como a subespécie de tartarugas-verdes do litoral de Israel. Os dados genômicos sugerem que, há cerca de cinco gerações, ou entre 100 e 150 anos atrás, aquelas tartarugas passaram por um gargalo populacional que dizimou 90% dos indivíduos.
“Segundo dados históricos, este morticínio ocorreu ao redor da Primeira Guerra Mundial, quando a caça a tartarugas marinhas no Mediterrâneo tomou proporções enormes. Acredita-se que teriam sobrado apenas 22 fêmeas”. A retomada da população foi obtida ao custo do aumento na endogamia, com o cruzamento entre primos e irmãos — com todos os riscos de doenças e deformidades genéticas que isto pode acarretar.
“Hoje, em termos de variabilidade genética, a capacidade de sobrevivência das tartarugas-verdes de Israel está comprometida e pode cair ainda mais. Se nada for feito, esta população tende a se extinguir”, alerta Camila.
A produção de genomas de alta qualidade das cinco espécies que faltam poderá revelar o tamanho do estrago que a Humanidade representa para a sobrevivência da longa linhagem das tartarugas-marinhas.
“Neste ano devemos publicar o genoma da tartaruga-cabeçuda, da tartaruga-de-pente e da tartaruga-de-kemp. E se tudo der certo, faremos o mesmo em 2024, com a tartaruga-oliva e a tartaruga-marinha-australiana,” explica Camila Mazzoni.
100 milhões de anos de adaptação aos oceanos capacitaram as tartarugas-marinhas a sobreviver em águas infestadas pelos mosassauros do Cretáceo, ou então pelo Megalodon (Carcharocles megalodon), o tubarão-branco-gigante de 50 toneladas que aterrorizava os oceanos até apenas dois milhões de anos atrás.
Mas nada preparou estas criaturas dóceis e inofensivas à coexistência com um predador supremo como o Homo sapiens. Depende apenas de nós decidirmos se queremos ou não nos tornar os seus fatídicos algozes.
Gostou de conhecer um pouco da história evolutiva das tartarugas-marinhas? Quer saber mais sobre a vida da fauna aquática brasileira?
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