boto cor-de-rosa

ERA UMA VEZ UM BOTO

Qual é a importância determinar quantas espécies existem de botos na Amazônia?

Quantas espécies de botos existem na Amazônia? Uma única, composta por diversas subespécies que habitam bacias hidrográficas distintas? Ou haveria outras espécies? Há evidências crescentes de que o boto cor-de-rosa do Amazonas (Inia geoffrensis) não seria uma única espécie, mas duas ou três.

Com base em dados genéticos, pesquisadores propuseram em 2014 que uma população de botos na bacia dos rios Tocantins e Araguaia deveria ser considerada uma espécie distinta: o boto do Araguaia (Inia araguaiaensis). Mas para a nova espécie ser consensualmente aceita, os biólogos necessitam de mais informações sobre as características físicas daqueles animais, diz Erika Hingst-Zaher, pesquisadora do Instituto Butantan.

À medida que ampliam os conhecimentos sobre os botos amazônicos, novas evidências podem levar à proposição de novas espécies — muito embora o mais comum seja justamente o oposto, isto é, a invalidação de espécies. “A gente vive descrevendo e derrubando espécies”, diz Erika, co-autora de um artigo na revista Journal of Mammalogy, reunindo novos dados sobre a morfologia craniana dos botos.

No trabalho, os autores argumentam que, apenas com base nos dados cranianos, a validade da espécie do boto do Araguaia não se sustenta. Por outro lado, os dados cranianos das subespécies de botos da Bolívia e da Venezuela reúnem modificações únicas, sugerindo que talvez se trate de espécies distintas. 

 

os botos na amazôniaBotos na Amazônia — boto cor-de-rosa recebe alimento

 

COLCHA DE RETALHOS EVOLUTIVA

Erika e seus colegas já examinaram, mediram e categorizaram 46 crânios de botos guardados nas coleções de diversos museus. De acordo com o trabalho, os botos bolivianos e venezuelanos têm crânios comparativamente delicados. Os bolivianos têm focinhos compridos forrados com dentes extras, e os venezuelanos são particularmente pequenos. “Mas o crânio da espécie proposta para o Araguaia é difícil de diferenciar do crânio da população amazônica”, diz Erika. 

“O boto amazônico consiste provavelmente em uma complicada colcha de retalhos evolutiva. Nosso estudo pode ter revelado a ponta do iceberg da variação existente”, afirmou a pesquisadora à revista britânica New Scientist.

Aprimorar essas distinções tem grandes implicações para a conservação do boto. “Se o boto for uma única espécie em toda a bacia amazônica, seria menos preocupante”, diz Erika. Estima-se que haja dezenas de milhares de botos em milhares de rios dos 5 milhões de quilômetros quadrados da Amazônia. “Mas se existem três espécies com populações mais restritas, então as três espécies podem se encontrar ameaçadas, por exemplo, devido à construção de barragens hidrelétricas na Amazônia”. 

Tal ameaça viria sob a forma de um isolamento ainda maior dos diversos grupos que compõem cada espécie. Isto acabaria por reduzir o contato e a troca gênica entre seus indivíduos, limitando o acesso às fontes de alimento rio acima ou rio abaixo, e aumentando a vulnerabilidade da espécie como um todo.

 

 

MILHÕES DE ANOS DE ADAPTAÇÃO

Além do poder de estabelecer onde fica a linha divisória genética entre as diversas populações de botos amazônicos, a biologia molecular também permitiu compreender a dinâmica do isolamento e da especiação dos diversos grupos de botos no passado remoto. Assim, aliando dados genéticos com conhecimento geológico, paleontológico e paleoclimático, os pesquisadores conseguiram estabelecer um roteiro para a adaptação dos botos aos rios da Amazônia.

A história começa no período Mioceno, entre 20 milhões e 10 milhões de anos atrás, quando o nível dos oceanos era consideravelmente mais elevado do que hoje, e línguas de mar penetravam profundamente o continente sul-americano através das calhas dos rios Amazonas, Magdalena na Colômbia e Orinoco na Venezuela. Os ancestrais tanto dos botos quanto dos peixes-boi e das raias amazônicas eram animais marinhos que habitavam aquelas línguas de água salgada que adentravam o continente. 

Pela mesma época, o movimento contínuo das placas tectônicas acelerou a formação dos Andes. Ao longo de milhões de anos, acompanhando a elevação da cordilheira, os terrenos da Amazônia ocidental (que hoje compreendem os estados do Amazonas, Acre e Roraima, além da Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela), foram se subindo, até eventualmente empoçar as águas onde viviam os ancestrais dos botos. Para sobreviver, por milhares de gerações aqueles cetáceos marinhos foram se adaptando às condições de uma vida em água-doce, dando origem aos botos atuais.

Nos últimos 200 anos, foram descritas 19 espécies de botos amazônicos. A primeira delas, em 1817, foi o boto cor-de-rosa (Inia geoffrensis) do Amazonas e do rio Negro. Em 1834, foi a vez do boto boliviano (I. boliviensis) das bacias do rio Beni na Bolívia, e do Alto Madeira em Rondônia. Apenas no século 19 foram descritas outras 15 espécies, todas eventualmente consideradas sinônimos das duas primeiras. Foi apenas em 1977 que a linhagem dos botos rosados das bacias do Orinoco e do Magdalena ganhou status de espécie (I. humboldtiana). 

Todas estas descrições foram feitas com base nas diferenças anatômicas das espécies, associadas ao hábitat que ocupam. Mas, com a revolução da genética do século 21, a comparação dos dados moleculares foi priorizada, acabando por revelar mais semelhanças do que diferenças. 

Numa analogia ao que acontece com os cachorros, onde um leque anatômico muito variado oculta uma identidade canina universal, o estudo do DNA dos botos amazônicos fez as três espécies serem vistas como uma só. Assim, os botos do Amazonas (I. geoffrensis geoffrensis), do Orinoco (I. g. humboldtiana) e da Bolívia (I. g. boliviensis) passaram a ser considerados três subespécies.

Porém, o mesmo poder dos dados moleculares que serviu para amalgamar populações de botos antes distintas, serviu para sugerir que a linhagem de botos do Araguaia acumulara ao longo de milhões de anos de isolamento diferenças genéticas suficientes para sustentar uma nova espécie — o que o trabalho de Erika e colegas sugere contestar. 

Da resposta para esta questão depende o correto estabelecimento dos riscos que cercam as diversas populações de botos, permitindo assim aos conservacionistas formular estratégias efetivas de proteção destes adoráveis mamíferos de água doce.

 

 


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2 comentários em “Era uma vez um boto”

  1. Caro Peter
    Pela mesma época, o movimento contínuo das placas tectônicas acelerou a formação dos Andes. Ao longo de milhões de anos, acompanhando a elevação da cordilheira, os terrenos da Amazônia ocidental (que hoje compreendem os estados do Amazonas, Acre e Roraima, além da Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela), foram se subindo, até eventualmente empoçar as águas onde viviam os ancestrais dos botos. Para sobreviver, por milhares de gerações aqueles cetáceos marinhos foram se adaptando às condições de uma vida em água-doce, dando origem aos botos atuais.
    Por favor, nesse parágrafo sobre “botos” substituir Roraima por Rondônia…nem preciso explicar…

    1. obrigado pelo comentário, querido amigo!

      a história evolutiva de botos, arrais-de-água-doce e peixes-boi, migrando da vida no mar para os rios, é maravilhosa!

      boa semana pra vc!

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