- Peter Moon
- 28/04/2023
- 05:10

A ALVORADA DA VIDA, NO PARAGUAI E NO BRASIL
Geólogo da Unesp encontra as primeiras evidências da passagem dos períodos Ediacarano ao Cambriano na América do Sul. São rochas que revelam a alvorada dos primeiros animais
A Explosão do Cambriano foi um evento único na história da vida. Se nas rochas pré-cambrianas, todas com idades superiores a 538 milhões de anos, a evidência de vida animal parecia ser parca, escassa, rara, nas rochas do Cambriano a vida multicelular explodiu repentinamente numa profusão de formas e possibilidades macroscópicas, em contraposição à vida microbiana que preponderava até então.
Por isso mesmo, o período Cambriano é o marco inicial do Fanerozoico (do grego phaneros, que significa visível, e zoikos, vida), o maior intervalo no tempo geológico, quando a vida no planeta assumiu proporções macroscópicas, ou seja, tornou-se visível. O Fanerozoico vem de 538 milhões de anos até o presente.
A Explosão do Cambriano foi a origem da maioria dos grupos de animais atuais. Seus primeiros fósseis foram achados em Burgess Shale, sítio paleontológico descoberto em 1908, no alto das Montanhas Rochosas canadenses. Há 505 milhões de anos, as rochas de Burgess Shale encontravam-se no fundo do mar. Investigadas continuamente há mais de um século, aquelas rochas já revelaram 93 espécies de animais muito primitivos.
Exemplos célebres são Pikaia, Halucigenia e Anomalocaris. Por apresentar vestígios de uma notocorda, o embrião da nossa coluna vertebral, a pequenina Pikaia (de 4 cm) tem sido há décadas laudada como ancestral direto dos vertebrados — ou seja, nosso ancestral, só que muito, muito distante.
Halucigenia, por outro lado, desafia todas e quaisquer definições. Parecida com um verme, tinha o corpo cilíndrico coberto por fileiras de tentáculos nas costas e pernas espinhosas na parte inferior. O bicho era tão esquisito que mais parecia saído de uma alucinação, daí seu nome.
Anomalocaris (ou “camarão anormal”) era claramente um artrópode, um dos maiores de que se tem conhecimento. Podia chegar a um metro de comprimento. Era uma fera submarina, o grande predador dos mares cambrianos.

MARES PRÉ-CAMBRIANOS
À maravilhosa diversidade da fauna de Burgess Shale foram sendo acrescidas novas formas de vida, à medida que iam sendo encontrados novos sítios cambrianos na China, Groenlândia, Austrália e Estados Unidos. Entretanto, apesar de impressionantes, os ecossistemas do período Cambriano eram desenvolvidos demais, tinham nichos demais, apresentavam uma divisão clara demais entre predadores e presas — além de contar com um predador de topo enorme demais. A biota cambriana necessariamente tinha que ter evoluído a partir de formas ainda mais primitivas (com predadores pequeninos), em ecossistemas que mal teriam o direito de ser definidos como tal, pois nem ecologia, como conhecemos hoje, havia.
Lentamente, graças aos olhos aguçados e aos martelos dos geólogos, os restos mineralizados de criaturas pré-cambrianas começaram a aparecer. Primeiramente na Austrália, em 1946. Em seguida, na União Soviética, em 1952. Em rochas com datações anteriores a 538 milhões de anos, paleontólogos australianos e russos descobriram os vestígios de pequenas criaturas marinhas muito primitivas (ou, no linguajar técnico, basais), e muito, muito bizarras — porém não tanto quanto Halucigenia, que até prova em contrário foi um ponto fora da curva…
À primeira vista, as criaturas pré-cambrianas pareciam diferir radicalmente de tudo o que se conhecia. Pareciam ser experimentos frustrados do laboratório da evolução. Pareciam se tratar de tentativas abortadas, ou porque perderam o rumo, ou porque jamais chegaram a decolar na direção de linhagens duradouras. Era como se os seres pré-cambrianos, mal saídos de seu berço evolutivo, tivessem imediatamente desaparecido sem deixar descendência.
Um exemplo daqueles organismos primevos é Dickinsonia, que tinha a forma de um disco. Outro exemplo é Spriggina, do formato de pequenos vermes. Ou ainda Charnia, criatura como forma de uma folha, mesmo sem ser planta.
As rochas onde as criaturas pré-cambrianas têm sido encontradas datam de 580 milhões a 538 milhões de anos atrás, período que ficou conhecido como Ediacarano, por causa dos fósseis australianos, achados nas colinas Ediacara.
O Ediacarano é o período final do Proterozoico (de proteros zoico, anterior à vida), o intervalo de tempo que vai de 2,5 bilhões de anos até 538 milhões de anos. Confesso que, a meu ver, esta divisão parece hoje um tanto ultrapassada, uma vez que os fósseis da biota ediacarana são bastante visíveis a olho nu. O que falta então para o Ediacarano ser realocado do Proterozoico para o Fanerozoico? Bem, deixemos esta questão para quem tem a responsabilidade de solucioná-la: os geólogos da Comissão Internacional de Estratigrafia, um órgão da Unesco.

AS COLINAS DE EDIACARA
Desde os anos 1960, importantes sítios ediacaranos foram sendo encontrados ao redor do mundo: na China (580 milhões de anos), no Canadá (565), na Índia e Reino Unido. No início da década de 1990, achou-se na Namíbia um sítio particularmente importante. Em 2019, as rochas namíbias permitiram datar com precisão o término do Ediacarano e o início do Cambriano em 538,8 milhões de anos. Os dinossauros não-avianos se extinguiram há 66 milhões de anos. O limite Ediacarano/Cambriano, portanto, é oito vezes mais antigo. Aqui estamos falando de um tempo realmente profundo.
O primeiro sítio Ediacarano no Brasil fica no Mato Grosso, perto de Corumbá. Lá descobriu-se em 1982 um animal chamado Corumbella. Mais recentemente, em 2010, elas foram achadas em Vallemi, um vilarejo no norte do Paraguai, às margens do rio Apa, na fronteira com o Mato Grosso do Sul.
“Vou lá há 15 anos. As pessoas mais falam guarani do que espanhol”, conta o geólogo Lucas Warren, do Instituto de Geociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro (SP). Foi nos depósitos calcários de Vallemi que Warren descobriu a primeira evidência preservada na América do Sul da passagem geológica do Proterozoico ao Fanerozoico, isto é, do Ediacarano ao Cambriano.
“O limite está muito bem definido. Tive muita sorte. Logo acima do limite há um tufo de cinzas vulcânicas, o que permitiu obter uma datação precisa de 535 milhões de anos”, explica o geólogo. A descoberta foi publicada em março no Boletim da Sociedade Geológica Americana.
Em Vallemi, a passagem do Ediacarano ao Cambriano é visível em dois locais: numa pedreira de calcário e num morrinho cortado para a abertura de uma rodovia.

ALVORADA DOS ECOSSISTEMAS
Uma das características das rochas de Vallemi é a presença de um icnofóssil chamado Treptichnus. Icnofósseis são vestígios na rocha deixados pela ação de animais, como pegadas e rastros, no caso de vertebrados, ou filamentos e tubos, no caso de pequenos invertebrados. Treptichnus é uma toca fóssil, a evidência petrificada da passagem de um pequeno organismo no fundo marinho ou abaixo dele.
Há também vestígios de pequenos animais nas rochas de Vallemi. Um deles é Cloudina, cujos fósseis se parecem a uma sequência de conchinhas cônicas de calcário, empilhadas umas sobre as outras, formando filamentos estreitos com menos de três milímetros de diâmetro e dois centímetros de comprimento.
Outro animal encontrado nas rochas do Ediacarano no Brasil e no Paraguai é Namacalathus, organismo em forma de taça que viviam presos ao fundo do mar, e eram provavelmente algo semelhantes aos braquiópodes modernos.
Por fim, temos Corumbella, animal encontrado pela primeira vez em Mato Grosso, em 1982, e que desde então foi achado em rochas no Paraguai e nos Estados Unidos. Corumbella é formada por uma longa sequência de anéis que se acredita tinham a função de carapaças. “Corumbella está entre os primeiros organismos com esqueleto! A vida no interior de uma armadura denuncia a necessidade de proteção contra predadores. Corumbella era caçada por predadores ainda desconhecidos. Estamos falando na alvorada dos ecossistemas, o começo da vida animal na Terra!”, empolga-se Warren.
A associação de fósseis de Cloudina e Namacalathus tem significado especial, pois também ocorre em Omã e na Namíbia.


ESPONJAS, ÁGUAS-VIVAS E CTENÓFOROS
Esponjas, cnidários e ctenóforos possivelmente formam as linhagens animais mais antigas. Entre a biota ediacarana, a criatura mais antiga que se conhece é possivelmente o fóssil de esponja de cinco milímetros: Otavia antiqua, achada na Namíbia em rochas com idades entre 760 e 550 milhões de anos.
Entre os cnidários, o grupo das águas-vivas, o mais antigo membro conhecido é Vernanimalcula, organismo achado na China em rochas depositadas no leito de antigos mares entre 600 e 580 milhões de anos atrás. Vernanimalcula era uma água-viva quase microscópica, tendo entre 0,1 e 0,2 milímetros de diâmetro, aproximadamente a largura de dois fios de cabelo.
Quanto aos ctenóforos, o grupo das carambolas-do-mar, seus fósseis mais antigos têm “apenas” 520 milhões de anos. São cambrianos. Apesar disto, há quem coloque os ctenóforos na base da vida animal. É o caso de dois pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina. Para eles, os ctenóforos vieram primeiro, e descendem das primeiras formas de vida multicelular. Na origem de tudo, advogam os pesquisadores, havia um tumor benigno. Somos todos seus descendentes. Leia esta reportagem aqui mesmo, no canal Ciência Brasil.


Gostou de conhecer a investigação do Ediacarano no Brasil? Quer saber mais sobre a origens das diversas formas de vida?
Então leia estas reportagens:
Na origem dos animais havia um tumor benigno – Pesquisadores identificam os ancestrais comuns a todos os animais nos primeiros ctenóforos, animais gelatinosos e translúcidos como a carambola-do-mar
A esperança da vida em Marte — Astrobiólogo estuda os efeitos dos raios UV em microorganismos num cristal de sal. Objetivo é investigar a panspermia: a origem da vida fora da Terra
5 comentários em “Alvorada da vida na América do Sul”
Muito interessante e importante a matéria sobre os fósseis ediacaranos e os primeiros do Cambriano. Meu doutorado, defendido em 1991 na USP, versou sobre Cloudina e Corumbella na região de Corumbá, MS. Desde então, as pesquisas evoluíram bastante, com destaque para os trabalhos do geólogo Lucas Warren.
Cordiais saudações e cumprimentos, Mariselma Ferreira Zaine
Muito obrigado, Mariselma. Desculpe por não responder antes, pois seu comentário caiu na caixa de spam do servidor do site. Acabei de ver e corrigir isso, me desculpe. Um abs, Peter
Por favor,quisiera conocer mas sobre este tema.Es maravilloso
Adorei a matéria e o portal! Gostaria de receber mais material!
Obrigado!
Muito obrigado, André. Estou publicando em média duas reportagens novas todas as semanas. Fique ligado! Abs Peter