As iguarias invertebradas dos
Paiter Suruí

Tradição alimentar da tribo Paiter Suruí de Rondônia preserva o consumo de invertebrados, como larvas de besouros e mariposas

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Dieta de larvas - As larvas do gorgulho-das-palmeiras (Rhynchophorus palmarum) são coletadas no tronco o jaracatiá. As crianças adoram comê-las frescas. Aí arrancam a cabeça preta com os dentes e sorvem o conteúdo gelatinoso espremendo a pele da larva, como se fosse um chupa-chupa

 

Eu ainda lembro do meu espanto quando li, há mais de 20 anos, sobre uma das predileções alimentares das crianças de algumas tribos em Papua Nova Guiné. Numa de suas idas a campo no interior daquela vasta ilha, nos anos 1960, o biogeógrafo americano Jared Diamond, da UCLA, presenciou um hábito alimentar que para nós pode parecer absurdamente bizarro. 

Em seu livro O Terceiro Chimpanzé, Diamond conta que as crianças de algumas tribos de Papua começam comer tarântulas aos seis ou sete anos. Para elas, aquilo nada mais é do que um passatempo, um misto de brincadeira e uma forma de matar a fome. 

Brincando na floresta, ao sentirem-se famintas, as crianças procuram no solo uma toca de tarantulas, onde enfiam um graveto, cutucando o bicho para forçá-lo a sair. Quando a aranha peluda emerge da toca, eles imediatamente a agarram e começam a arrancar suas patas para se deliciar com elas. 

Diamond conta ainda que as crianças competem entre si para capturar as tarântulas maiores e mais suculentas. Como os pelos do aracnídeo podem incomodar na boca, é comum as crianças espetarem a tarantula num graveto para chamuscá-la no fogo e se livrarem dos pelos, devorando-a em seguida.

Muito ao contrário de ser uma exceção, o hábito de comer invertebrados terrestres é algo disseminado entre os caçadores-coletores de todo o planeta — ou era, até eles tomarem contato com a “civilização”, momento a partir do qual tais práticas de alimentação ancestrais, como a dieta de larvas, começam a desaparecer.

Essa foi uma das coisas que me chamaram a atenção quando bati os olhos no artigo “Invertebrados amazônicos na dieta tradicional dos Paiter Suruí no Sudeste do Brasil”, publicado em Human Ecology. O artigo é um dos frutos da pesquisa de doutorado de Ariel Molina, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA, em Manaus.

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Dieta de larvas - O intrépido pesquisador Ariel Molina fez questão de experimentar todas as iguarias invertebradas que os Paiter Suruí lhe ofereceram. Na foto, ele está prestes a devorar larvas fritas de mariposa. "Eu adorei, É maravilhoso!"

 

IKABYKATAD, O CORTADOR DE PILÃO

Paulista de Botucatu, entre 2017 e 2020 Ariel Molina empreendeu seis viagens de campo à aldeia Joaquim, uma das 30 aldeias da Terra Indígena Sete de Setembro, em Rondônia, o lar dos Paiter Suruí. Ao todo, Ariel viveu 290 dias entre os indígenas. Para estudar seus hábitos alimentares, o pesquisador de Etnobotânica teve que aprender tupi-mondé, o idioma dos Paiter Suruí, que viviam isolados até 1979, quando foram conectados pelo sertanista Apoena Meireles, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas — FUNAI

O que aconteceu em seguida foi mais um capítulo da mesma tragédia que vem se repetindo nas Américas desde 1492. Estima-se que havia em 1969 mais de cinco mil Paiter Suruí no momento do contato, em 1979. Poucos anos depois, devido a epidemias de gripe e sarampo, o número caiu para menos de 300. Hoje eles são cerca de 1.500.

“Passado meio século, todas as crianças, jovens e adultos falam português. Menos os anciões. Eles entendem português, mas só falam tupi-mondé. Aprender o idioma foi o jeito para conversar com os anciões e conhecer os nomes das plantas, frutas e invertebrados que fazem parte de sua dieta ancestral”. 

“A propósito, os Paiter Suruí não me conhecem por Ariel. Meu primeiro contato com eles foi em 2011, seis anos antes do início da pesquisa. Foi quando me batizaram de Ikabykatad. Ikaby quer dizer pilão. Katad é a ação de cortar. Logo, sou o “cortador de pilão”, uma expressão usada na cultura deles sobre o ato de acolher pessoas e ser anfitrião. Quando chegavam visitantes na aldeia que não eram esperados, logo uma jovem cacique enviava pessoas para a floresta para cortar árvores e fazer pilões, usados para fazer comidas e bebidas tradicionais. Essa foi a história que me contaram”. 

Aproveito para sugerir uma visita à @ikabykatad, a página do Ariel no Instagram, pois lá tem imagens sensacionais dos Paiter Suruí.

dieta Paiter Suruí 1
Dieta de larvas - O o gorgulho-das-palmeiras (Rhynchophorus palmarum) pode ser consumido fresco, ou levemente passado na frigideira, quando solta um óleo que pode ser usado para fazer um tipo de manteiga. As larvas fritas são maceradas e misturadas na massa do pão ou servidas com arroz

 

BESOUROS E MARIPOSAS

O hábito alimentar tradicional de comer larvas de insetos continua bem vivo entre o Paiter Suruí. Eles se deliciam com larvas de coleópteros (besouros) e lepidópteros (mariposas), principalmente. Existem na região cinco espécies comestíveis de larvas de coleópteros que atacam palmeiras. 

“As crianças adoram comer as larvas que crescem nos palmitos das palmeiras”, afirma Ariel. No caso, ele está se referindo às larvas do gorgulho-das-palmeiras (Rhynchophorus palmarum). As larvas são obtidas de duas formas. Os indígenas saem caminhando pela mata à procura de troncos caídos de Jaracatiá (Jacaratia spinosa). Não se trata de uma palmeira, mas de uma árvore conhecida como Mamão do Mato, e pertencente ao mesmo gênero do papaia. 

Quando encontram um tronco, este já pode ter sido infestado pelas larvas do besouro, que são coletadas. Mas pode ser que o tronco encontrado tenha acabado de cair e ainda esteja livre de larvas. Neste caso, os Paiter Suruí abrem o tronco ao meio e vão embora. Entre 45 dias e dois meses depois, eles retornam ao local, apenas para encontrar as duas partes do tronco infestadas de larvas grandes, imediatamente antes da fase de pupa, ou seja, antes do início da metamorfose que as transformará em mariposas.

Por serem gorduchas, as larvas do gorgulho das palmeiras lembram vagamente Chucrute, a lagarta do filme Vida de Inseto. Mas, ao contrário de Chucrute, as larvas do gorgulho não são verdes, não têm manchas, nem antenas, nem patinhas. Elas são de um amarelo encardido, tem a cabeça preta e, ao menos para mim, aspecto bastante repelente. 

“Certa vez vi um pessoal chegando na aldeia com baldinhos e garrafas PET cheias de larvas. As crianças enlouquecem, vêm correndo, arrancam a cabeça da larva com os dentes, e espremem na boca o conteúdo gelatinoso de dentro da pele da larva, como se estivessem chupando um geladinho ou um chupa-chupa”, conta Ariel. 

Neste momento, eu aposto que você deve estar imaginando a cena com ar de nojo. Comigo também é assim. Mas considere o seguinte: a culinária ocidental jamais excluiu do cardápio os invertebrados marinhos, como ostras, mexilhões, lulas, siris e polvos. Então, por que sentimos asco apenas quando imaginamos o consumo de invertebrados terrestres? Não deveria ser o mesmo?

Voltando aos gorgulhos, além de frescas, suas larvas também podem ser consumidas após uma leve passada na frigideira. 

crianças Paiter Suruí
Dieta de larvas - As crianças Paiter Suruí adoram comer estes insetos. Segundo Ariel Molina, "quando elas avistam alguém com baldes cheios de larvas, elas enlouquecem! E correm para pegar algumas e comer na hora, ainda frescas"

 

PETISCOS & SALGADINHOS

Os Paiter Suruí denominam de mãyõrã a qualquer uma das espécies de besouro que parasitam os jaracatiás e palmeiras como o babaçu, o buriti e a pupunha. “Cada palmeira tem uma larva com um sabor específico. As larvas do jaracatiá têm um sabor mais fraco, sendo indicadas para o paladar infantil. Já as do buriti têm gosto bem mais forte”, diz Ariel.

Nosso intrépido pesquisador experimentou todos os invertebrados da dieta Paiter Suruí que lhe foram apresentados. “Não apreciei as larvas de nenhuma dessas larvas. Para mim o paladar, elas têm um gosto forte de óleo de coco. É muito distante daquilo que estou acostumado”. 

De acordo com Ariel, a entomofagia ou hábito de comer insetos ainda é disseminado em inúmeros povos originários das Américas, mas também em sociedades tradicionais na África, Ásia e Oceania. Na China, como todas sabem, nas feiras livres pode-se consumir espetinhos de escorpião, lacraias, baratas, cigarras fritas, entre dezenas de insetos. Ariel conta que os primeiros relatos de entomofagia no Brasil são do padre José de Anchieta. Em 1560, jesuíta descreveu o consumo pelos tupinambás dos insetos nos troncos ocos da taquara (Guadua trinii).

Na Terra Indígena Sete de Setembro há duas espécies de besouros crisomelídeos que infestam o fruto do babaçu, o besouro-da-castanha (Pachymerus cardo) e a broca-das-palmeiras (gênero Caryobruchus). A coleta das larvas nos cocos do babaçu é uma atividade exclusivamente feminina. As mulheres procuram entre os frutos caídos ao chão aqueles que apresentam furinhos, sinal de que a larva está lá dentro. Aí, as mulheres usam algum instrumento bem duro como um martelo para quebras os cocos e coletar as larvas. As larvas são pequenas, gordinhas, recurvadas e de um amarelo mais claro. Lembram castanhas de caju. A quebra dos cocos é realizada ainda na floresta. 

”Estas larvas não são consumidas cruas. É preciso passá-las na frigideira. São fritas na própria gordura. Só de colocar no calor da frigideira as larvas soltam um óleo e ficam crocantes. O óleo é reaproveitado para fazer um tipo de manteiga. Já as larvas fritas podem ser maceradas e misturadas com farinha da polpa do babaçu e farinha de milho para fazer a massa do pão mamé, um tipo de biju dos Paiter Suruí”.

Segundo Ariel, os insetos fritos são principalmente comidos como petiscos.

“É gostoso?”, perguntei.

“Super! É maravilhoso. Tem um gosto que chega próximo do da castanha de caju. É como se fossem salgadinhos. Não dá pra parar de comer”, garante o pesquisador intrépido.

frigideira
Dieta de larvas - Passadas na frigideira, as larvas de mariposas ficam sequinhas e crocantes, como salgadinhos

 

LEPIDÓPTEROS E TANAJURAS

Outro grupo de insetos que fazem parte da dieta tradicional da tribo são as larvas de quatro espécies de mariposas que infestam a seringueira (Hevea brasiliensis), o breu-manga (Protium altissimum), a castanheira (Bertholletia excelsa) e o caucho (Castilla ulei).

“Os castanheiros odeiam estes insetos. São considerados uma praga, ao desfolharem a castanheira e quebrarem a safra de castanhas. As larvas são fininhas, fininhas e alaranjadas. “Entre os Paiter Suruí, estas larvas, elas são tostadas no calor da frigideira e ficam muito crocantes. Achei fantástico. Tão bom quanto os crisomelídeos, os besouros do babaçu”.

A dieta tradicional da tribo também inclui o consumo de formigas tanajuras, as nossas conhecidas saúvas (gênero Atta). Mas Ariel pouco observou seu consumo, que parece estar em declínio, assim como o consumo de mel das diversas espécies de abelhinhas amazônicas. Já os pitus, os caranguejos-de-água-doce, deixaram de ser consumidos. 

A dieta tradicional dos Paiter Suruí incluía milho-fofo, batata-doce, cará, taioba, macaxeira, amendoim e carne de caça, além dos insetos e diversas frutas, como taperebá (o cajá), abiú, o limão-do-mato (bacuripari) e o cajuaçu ou caju-do-mato. Após o contato com os brancos, os Paiter Suruí abandonaram seus roçados tradicionais e passaram a cultivar café, castanha e banana. 

Hoje em dia, a dieta inclui arroz, feijão, café, sal, óleo, açúcar, carne bovina e frango. “Durante a pandemia eles se ressentiram muito disso, pois o isolamento social no caso dos povos originários foi muito restritivo. Faltou comida. Logo agora eles passaram a dar mais atenção aos antigos roçados”.

Preparação do cauim, 1837 - Jean Ferdinand Denis
O cauim, bebida levemente alcoólica conhecida como a "cerveja dos índios", faz parte da cultura ancestral de praticamente todas as nações indígenas brasileiras. Porém, entre os Paiter Suruí, seu consumo foi proibido pelos missionários evangélicos ("Preparação do cauim", 1837 - ilustração de Jean Ferdinand Denis)

 

CAUIM PROIBIDO

A expansão evangélica em nosso país não deixou os Paiter Suruí de lado. Na reserva existem missões adventistas, batistas e da Assembleia de Deus. “Os Paiter Suruí ainda comem carne de caça. Mas, por motivos religiosos, pararam de cacas queixadas, pois a carne de porco é proibida em diversos cultos”, revela Ariel.

Foi quando lhe perguntei sobre o cauim, a cerveja dos indígenas, que tem levíssimo teor alcoólico. Como você deve saber, o consumo de cauim é disseminado entre praticamente todos os povos originários do Brasil. 

“O caxiri, ou cauim, era uma bebida de consumo intrínseco na cultura dos Paiter Suruí. O consumo era diário, e fazia parte de suas festas e ocasiões especiais. Mas isso acabou. Os pastores proibiram o consumo do cauim. Agora todos bebem refrigerante — infelizmente

paiter com larva

Ariel não teve oportunidade de retornar à aldeia Joaquim desde o início da pandemia. Ele pretende fazê-lo ainda este ano. Os Paiter Suruí adoram futebol. Os times preferidos são o Corinthians, o Palmeiras e o Flamengo. Quem sabe Ariel tenha oportunidade de assistir a uma partida de futebol entre os times da reserva. O time da aldeia Joaquim é o Borussia, e o da aldeia Lapetanha chama-se Barcelona. O que será que os torcedores comem durante cada partida? Aposto que deve ser larva de mariposa frita. Faltou perguntar isso ao Ariel.

Interessante a dieta de larvas tradicional dos Paiter Suruí, não achou? Quer saber mais sobre relações ancestrais entre homens e animais?

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