O CRÂNIO DO PURUSSAURO
Saiba como foi realizada a descoberta, em 1986, do crânio do purussauro, o jacaré gigante da Amazônia. Em 2019, acharam no Acre um segundo crânio, quase tão grande e ainda mais completo
- Peter Moon
- 04/06/2023
- 17:52
O purussauro é um dos mais célebres fósseis brasileiros, posto que divide com os pterossauros do Araripe e a enorme ave-do-terror de Taubaté. Muita gente hoje sabe que o purussauro foi um jacaré gigante que viveu na Amazônia há 10 milhões de anos. Há réplicas de seu imenso crânio espalhadas por meia dúzia de museus do país, com destaque para um esqueleto completo com 13 metros de comprimento exposto no Museu da Amazônia, em Manaus — sem falar na maravilhosa escultura do bicho em vida, no Museu de História Natural de Lima, Peru.
O purussauro está na moda. Mas nem sempre foi assim. Sua atual celebridade só foi possível graças à descoberta de um crânio quase completo, em 1986. Foi uma maravilhosa obra do acaso. A história de como o fóssil foi encontrado nunca foi contada. Até agora.
Em meados dos anos 1990, praticamente ninguém fora da comunidade paleontológica ouvira falar no purussauro. Foi quando, acompanhando o paleontólogo Alceu Ranzi até Rio Branco (AC), ele me levou para ver o crânio do bicho, na Universidade Federal do Acre (UFAC).
A primeira vez que se vê o crânio completo do purussauro na sua frente, não dá pra esquecer. Exposta no interior de uma enorme caixa de vidro, estava uma cabeçorra monstruosa com 1,5 metro de comprimento e quase um metro de altura, e dentes grandes como a ponta de picaretas. Aquele fóssil não deixava nada a dever ao crânio de um tiranossauro rex que eu vira um ano antes no Museu de História Natural de Nova York. Nadinha.
Como pode eu nunca ter ouvido falar naquele jacaré descomunal? Como pode (em 1994) praticamente ninguém no Sul do Brasil conhecer sua existência? Aquela primeira visão do crânio do purussauro me assombra até hoje. Eu sempre tive curiosidade em saber como ele foi descoberto. Acabei de descobrir. E vou contar pra vocês.

1892
A espécie Purussaurus brasiliensis foi descrita em 1892 pelo naturalista e botânico João Barbosa Rodrigues (1842-1909), o então diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. A descrição foi feita com base num único fragmento do maxilar direito (hoje perdido), coletado quando o naturalista trabalhava em Manaus. Era um fragmento imenso. Media 57 cm…
“Se em nossos dias, à exceção do homem tudo é grande no vale do Amazonas, em épocas geológicas tudo era colossal”, escreveu Barbosa Rodrigues há 132 anos. “De acordo com as dimensões (do maxilar), estimo que a cabeça do Purussaurus tinha de 1,50 a 1,60 metro de comprimento, o que daria um comprimento total do animal de 10,50 a 11,20 metros. (…) Creio poder incluí-lo em um novo gênero, que chamarei Purussaurus, de Purus, o rio de mesmo nome nas margens do qual o fóssil foi achado, e de saurus, lagarto”.
Barbosa Rodrigues não publicou sua descrição na Europa. Escolheu fazê-lo no Brasil, e ainda por cima numa publicação de vida efêmera (teve apenas duas edições), a revista do também efêmero Museu Botânico de Manaus, que o pesquisador dirigira entre 1893 e 1890, antes de se mudar para o Rio de janeiro.
A decisão de publicar o artigo no Brasil em tudo contribuiu para manter o purussauro na obscuridade científica. Apesar da tremenda importância do achado, seria necessário aguardar mais de um século até que o purussauro pudesse ser finalmente alçado ao seu lugar de destaque no panteão da paleontologia mundial.

UM SÉCULO DE COLETAS
Pouco a pouco, com o passar das décadas, outros fósseis de purussauro começaram a surgir. Nos anos 1910, do rio Purus saíram duas vértebras, um fragmento de mandíbula e uma placa dérmica (Mook, 1921). Em 1920, foram achados na Colômbia novos fragmentos de maxilar e novas vértebras (Mook 1941).
Faltava achar espécimes completos.
O primeiro deles veio em 1959, no Peru, quando o escritor e naturalista americano Peter Matthiesen descobriu um maxilar gigante de 125 quilos nas barrancas do rio Mapuya, a 100 km da fronteira com o Acre. Matthiesen transportou o fóssil numa canoa por mais de 300 km até a cidade de Pucallpa, onde o espécime foi apreendido pela polícia e subsequentemente perdido. Só foi reencontrado nos anos 1980 na casa de um médico, pelo paleontólogo Mario Urbina, da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, em Lima.
Paralelamente, o estudo paleontológico e geológico do oeste da Amazônia foi revelando um passado formidável, onde no lugar da maior floresta tropical do mundo havia o maior pantanal de que se tem conhecimento, o Lago Pebas, uma referência a uma das formações geológicas com as rochas do antigo pantanal.
Em 1912, a partir de um rostro parcial achado no rio Acre, foi descrito um gavial gigante de 10 metros. O gripossuco tinha quase o dobro do tamanho dos maiores gaviais encontrados hoje na bacia do rio Ganges. Seu fóssil, levado para o museu geológico de Hamburgo, foi destruído na 2ª Guerra Mundial.
Na Colômbia, nos anos 1950, paleontólogos americanos começaram a descobrir restos de uma megafauna espetacular do período Mioceno (o lago Pebas existiu entre 18 e 8 milhões de anos atrás). Eram preguiças-gigantes, litopternas, toxodontes e astrapotérios.
Em 1964, o grande paleontólogo Llewelyn Price achou no Acre os restos de outro crocodilo gigante (10 metros) com uma curiosíssima bocarra em formato de bico de pato.
Em 1976, na Venezuela, foi a vez do megatracajá Stupendemys, o maior membro da linhagem das tartarugas, pois dono de uma estupenda (daí seu nome) carapaça de 3,5 metros de comprimento.
No início dos anos 1980, com a descoberta de roedores do tamanho de búfalos e jabutis gigantes, não restava mais dúvida de que o lago Pebas havia sido uma terra de gigantes. O predador de topo daquele antigo bioma era o purussauro.
Faltava achar um crânio completo.
RANCHO SEM TAPIOCA
“Em julho de 1986, eu estava em Porto Alegre. Era mestrando de paleontologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação do finado professor Mário Costa Barberena (1934-2013). Foi quando o Alceu Ranzi me ligou, dizendo: Jonas, venha já para Rio Branco!”, me contou o paleontólogo Jonas Pereira de Souza Filho, ex-reitor da UFAC.
Alceu Ranzi, que à época chefiava o Laboratório de Pesquisas Paleontológicas da UFAC, havia acertado uma expedição de coleta de fósseis em parceria com o paleontólogo americano Kenneth Campbell, do Museu de História Natural de Los Angeles (NHMLAC). Mas a expedição aconteceria em agosto, quando Alceu estava partindo para fazer o seu doutorado na Flórida. Caberia, portanto, a Jonas a tarefa de liderar o grupo brasileiro na expedição ao alto rio Acre. Daí a necessidade de seu retorno premente a Rio Branco.
Entrevistei Jonas no início de junho. Queria que ele me contasse como foi o achado do crânio do purussauro. Eis a sua história:
“Aquela foi uma das mais exitosas expedições entre todas as que participei nesses quase 40 anos de pesquisa na Amazônia”, recorda Jonas.
“Na Amazônia as distâncias se medem por horas de barco, por época do ano. Era o mês de agosto, quando chove muito pouco. O rio Acre, que em boa parte do ano é caudaloso, naquele momento se encontrava reduzido a um quase riacho a serpentear pelo leito seco”.
“Numa infinidade de pontos, a lâmina d’água estava reduzida a apenas 30 centímetros. Era quando a gente precisava desembarcar para arrastar as canoas por sobre os bancos de areia. Foi assim na viagem de ida. Imagine na volta, com os barcos carregados com mais de duas toneladas de fósseis! Foram cinco dias de viagem, desde o município de Assis Brasil até o Igarapé do Pato, onde fomos caçar fósseis”.
Assim como aconteceu com Alceu, Campbell também não poderia participar da expedição. Enviou em seu lugar o paleontólogo Carl David Frailey, acompanhado por dois técnicos. O grupo brasileiro, além de Jonas, era formado pelo estudante de biologia José Carlos Rodrigues das Santos, por um soldado de exército, e dois barqueiros.
“Frailey ficou encarregado de comprar os suprimentos para a viagem. Foi um desastre. Ele comprou comida de alpinista: nozes, castanhas, uvas-passas. Foi um problema enorme, pois os acreanos estavam acostumados a comer tapioca, carne de caça, tomar café. Não aquele tipo de comida”.
Se o cardápio da expedição foi um desastre, as coletas foram abundantes. Num relato publicado em 1991 na revista do NHMLAC, Campbell disse que foram achados “restos quase completos de duas preguiças-terrestres, além de centenas de ossos de toxodontes, mandíbulas de lagartos, dentes de crocodilianos, dentes de roedores, peixes, e (à época) do segundo dente de primata já encontrado Amazônia”,
O PRIMEIRO CRÂNIO
“Após três semanas de coletas na região do Igarapé dos Patos, a gente não tinha mais tempo para nada. Precisávamos voltar o mais rápido possível para Assis Brasil, e de lá para Rio Branco, pois os americanos tinham passagens marcadas de volta aos Estados Unidos”, me explicou Jonas.
“Na viagem de regresso, estávamos cansados, desgastados, comendo mal. A volta foi pior que a vinda, pois os barcos estavam carregados de fósseis. Além de termos que arrastar os barcos sobre o leito seco do rio, nos locais onde ele fluía, mas era raso, a gente tinha que caminhar pela margem, para os barcos carregados pudessem fluir melhor”.
“O purussauro foi descoberto completamente por acaso”, prossegue Jonas. “Na manhã do segundo dia de viagem, numa daquelas caminhadas, a gente cruzou o rio a pé de uma margem à outra. O Zé Carlos ia uns três metros na minha frente, e o resto da equipe seguia bem atrás. No instante em que atingimos a outra margem do rio, o Zé Carlos exclamou: “que coisa é esta?”.
Bem ao seu lado, parcialmente coberto por lodo e areia, via-se claramente uma enorme arcada com três ou quatro alvéolos (dos dentes) vazios. Não havia a menor dúvida do que se tratava.
“É um purussauro!!!”, exclamou Jonas.

CORRIDA CONTRA O TEMPO
“A cabeça estava virada para baixo, com os alvéolos para cima. Não tinha as mandíbulas”, recorda-se Jonas. “Se o crânio estivesse coberto por um dedo de areia, não teríamos visto. A gente praticamente pisou em cima do bicho!”
“Naquele momento, não tínhamos ideia da dimensão do fóssil. Quando Frailey e os demais nos alcançaram, eles não acreditaram no que havíamos achado. Encontrar um crânio de purussauro era um sonho acalentado há muito tempo. Mas tínhamos pouquíssimo tempo disponível para coletar o fóssil. Começamos imediatamente”.
“A gente não sabia o tamanho do espécime. Começamos escavando pela base para ver a dimensão daquilo. Rapidamente apareceram duas vértebras do pescoço. Quanto mais a gente cavava, mais eufóricos ficávamos. Em pouco tempo percebemos que havíamos encontrado um crânio inteiro. O fóssil parecia intacto, sem rachaduras. Para ser uma cabeça completa, só lhe faltava a mandíbula e os dentes”.
Para retirar o crânio de seu leito rochoso, os pesquisadores não tiveram outra opção a não ser quebrá-lo em três partes — que viriam a ser coladas novamente quando da preparação do fóssil, iniciada em Los Angeles em 1989.
“O trabalho de coleta do purussauro levou um dia e meio. Começamos naquela manhã e partimos na tarde do dia seguinte”, recorda-se Jonas. “Por sorte ainda havia capacidade nos barcos para carregar os pedaços do purussauro. Os fragmentos do crânio tinham pedaços de rocha incrustados neles. Tínhamos envolto os espécimes em gesso, para evitar que quebrassem durante o transporte. Aquilo tudo devia pesar bem mais de uma tonelada”.
Com a coleta terminada, foram mais três dias de viagem até chegarem em Assis Brasil, de volta à civilização.
RIXA ACADÊMICA
Do ponto de vista científico, a expedição foi um sucesso retumbante. Do ponto de vista acadêmico, foi um desastre. Todo o material coletado foi enviado para preparação no museu de Los Angeles. Foi quando começaram os problemas.
Hoje é condição sine qua non que os pesquisadores do país de origem dos fósseis participem de suas descrições. Há 40 anos, Campbell e Frailey não pensavam deste jeito. Na medida que as partes do purussauro eram libertas da rocha e preparadas para formar o crânio que todos conhecemos, o clima entre americanos e brasileiros foi azedando
“A relação com os americanos sempre foi muito difícil. Eram pessoas complicadas. Eles não nos viam como pesquisadores, mas apenas como estudantes”, diz Jonas. “Tanto é assim que não nos convidaram a participar de nenhuma das descrições do material coletado”.
“Campbell e Frailey eram imperialistas”, resume Alceu. “Eles nos viam como mão-de-obra barata, e nada mais”.
Eventualmente, os brasileiros decidiram denunciar o acordo com os americanos. Esta talvez seja a razão pela qual jamais saiu publicado nenhum artigo científico sobre o crânio do purussauro — nem sobre nenhum outro fóssil coletado em 1986.
“Quando o crânio ficou pronto em 1992, sem nos consultar, Campbell acertou de enviá-lo para o Departamento Nacional de Produção Mineral de Manaus”, diz Jonas. DNPM é o órgão do Ministério das Minas e Energia que fiscaliza a produção mineral no país, e isso inclui a prospecção de fósseis.
“Os americanos não queriam devolver o crânio para nós no Acre. Quando eu soube que o fóssil iria para o DNPM, fui a Manaus, expliquei o caso, e voltei com o crânio original e sua réplica”.
Segundo Alceu: “a gente não fazia a menor ideia da cara do purussauro. Quando o material foi enviado aos Estados Unidos, era um monte de rochas cobertas por gesso. Anos depois, quando o enorme engradado foi aberto no laboratório de paleontologia da UFAC, ninguém estava preparado para a visão daquele monstro magnífico”.
Jonas me disse o seguinte: “Peter, eu entendo porque você ficou assombrado quando viu o purussauro pela primeira vez. Nós também ficamos. Não há como não se assombrar quando se vê aquele crânio gigantesco pela primeira vez”.
A MANDÍBULA PERDIDA E O SEGUNDO CRÂNIO
“Dez anos depois da expedição de 1986, nós voltamos ao local exato onde havíamos encontrado o crânio do purussauro. E descobrimos o maxilar que faltava. Estava a uns três metros de distância. Agora o crânio está completo”, diz Jonas.
Em décadas de trabalho, Alceu, Jonas e seus alunos acharam inúmeros fósseis de purussauro. “Há inclusive mandíbulas 30% maiores que as do crânio montado, o que sugere que o jacaré gigante podia ser maior, quem sabe atingindo os 15 metros. Temos também fósseis de purussauros filhotes”.
Em 2019, pouco antes da pandemia, veio outra descoberta espetacular. O segundo crânio de purussauro, um pouco menor que o de 1986, porém com uma diferença fundamental. “Este está completo. Foi achado com o crânio associado à mandíbula com dentes. O fóssil encontra-se em preparação para poder ser estudado e descrito”.
Até o momento, já foram encontrados fósseis de purussauros no Brasil, Peru, Venezuela, Colômbia, no Panamá e também na Argentina. Foram descritas três espécies de purussauros, indicando que os jacarés gigantes existiram entre 16 e 5 milhões de anos atrás.
Uma curiosidade. Em 2015, paleontólogos brasileiros, entre eles Jonas, investigaram o crânio achado em 1986, para determinar qual teria sido a força da mordida do purussauro. Chegaram a um resultado, vale repetir o adjetivo, assombroso. A mordida de um purussauro adulto tinha o poder esmagador de uma prensa hidráulica industrial. Quando as mandíbulas do purussauro abocanhavam suas vítimas, era como se um peso de 7 toneladas as estivesse esmagando.