- Peter Moon
- 11/05/2023
- 15:22

A MULTIPLICAÇÃO DOS PEIXES-VAMPIRO
Peixinho amazônico tem fama terrível e uma família numerosa. Ictiólogos descobrem 9 novas espécies de candirus. Todas são “vampirinhas” que se alimentam de sangue
Há muitos anos, em 1994, tive a sorte de participar de uma expedição científica em Rondônia, na reserva dos índios karitiana, próxima ao Acre e à fronteira boliviana. Após 6 ou 7 dias de andança ininterrupta na mata, voltamos à nossa base, um posto da FUNAI que ficava diante da aldeia. Entre nós e os índios corria um riacho. No estado de imundície e cansaço em que nos encontrávamos, largamos nossas mochilas e equipamentos em qualquer canto e corremos para mergulhar no riozinho, de roupa e tudo.
Neste momento, começamos a tirar a roupa para um banho mais que urgente. Já sem calça e camisa, fui alertado por um dos guias para parar por ali mesmo:
Não tire a cueca! O candiru pode pegar você! – alertou Nilton, um técnico do Museu Emílio Goeldi que participava da expedição.
Era a primeira vez que eu ouvia aquele nome.
Candiru, como assim? O que é isso? — indaguei, ao que Nilton me contou a seguinte estória:
Na Amazônia tem o candiru, um peixinho que pode entrar pelo pênis quando os homens se banham nos rios. Ele entra pelo pênis (Nilton era uma pessoa simples. Não sabia que se chama uretra), penetra fundo e não sai mais. O candiru só pode ser retirado no hospital! (há relatos sobre o peixe também penetrar o reto e a vagina, e também em outros mamíferos não-humanos).
Eu, obviamente, segui o conselho do Nilton e mantive a cueca, tratei de tomar o meu banho, prossegui na expedição, depois voltei a São Paulo, e os anos se passaram.

ÀS MARGENS PLÁCIDAS
Desde aquela viagem, vez por outra ouço falar do tal candiru, volta e meia lembro do episódio com Nilton. No entanto, nunca me interessei em saber mais sobre aquele peixinho… até a semana passada. Foi quando corri os olhos pelo título de um artigo científico recém-publicado na revista Papéis Avulsos de Zoologia, onde são descritas nove espécies de peixes-vampiro.
“Opa, isto é notícia!”, pensei no mesmo instante.
Fui ver quem eram os autores. Um deles é o ictiólogo (ou estudioso dos peixes) Fernando Dagosta, da Universidade Federal da Grande Dourados, no Mato Grosso do Sul. O outro autor, para minha surpresa, eu já tinha entrevistado: o também ictiólogo Mário de Pinna, do Museu de Zoologia da USP, que fica no bairro do Ipiranga, bem atrás do museu homônimo, que por sua vez se situa onde um dia foram as tais margens plácidas.
A última vez que falei com Mário foi em 2018, quando sua equipe descobriu uma nova família de peixes amazônicos, a Tarumania. Descrever novas espécies de peixes no Brasil, por causa da imensidão de nossas bacias hidrográficas, é algo bastante corriqueiro. Entre bagres, pacus e tambaquis, praticamente toda semana tem um peixe novo. Algumas vezes por ano surge um novo gênero… mas uma família inteiramente nova de peixes? Uau! Aquilo não acontecia havia mais de 50 anos.

REENCONTRO INESPERADO
Voltando ao presente, ao avistar o nome de Mário tratei imediatamente de procurá-lo e acertamos a entrevista. No dia seguinte, quando começou a conversa, ele desembestou a falar no meu ouvido das novas espécies de candiru descobertas. Começou explicando que todas são hematófagas, ou seja, se alimentam de sangue, e pertencem ao gênero Paracanthopoma, “provavelmente o menos conhecido da subfamília Vandelline, a mesma do candiru, aquele peixinho amazônico conhecido por penetrar a uretra”.
“Opa, candiru, olha você aí novamente!”, pensei.
“Mas isso é muito raro. Existe apenas um caso documentado em 1997”, disse Mário. “De qualquer forma, uma vez que o candiru penetra a uretra, deve ser impossível retirá-lo, pois tem uma boca e cabeça cheias de dentes pontiagudos para agarrar o tecido e não soltar”.
Fui checar e constatei que, de fato, o único caso documentado de ataque de candiru aconteceu em Itacoatiara, no Amazonas, em 1997 (leia no final da reportagem).
Pode ser, pensei, mas o fato é que em 1994, quando estive entre os karitiana, o perigo representado por este peixe já era de domínio público. Logo, imagino que tenham existido inúmeros casos jamais registrados. Pesquisei e descobri que as histórias e lendas que rondam o candiru tiveram no século 19 (leia mais abaixo).
De qualquer forma, Mário me explicou a estratégia do peixinho parasítico. Ele se aloja nas brânquias (ou guelras) dos peixes e morde uma das artérias do hospedeiro para beber seu sangue. “No caso humano, ele deve se sentir atraído pelo fluxo e cheiro da urina, e daí confundir a uretra com as guelras de um peixe”.

SOBRE BAGRES, ENGUIAS E PEIXES-GATO
Outra novidade: fiquei sabendo que tanto o candiru (Vandellia cirrhosa) e as novas espécies de candiru do gênero Vandellia, quanto os peixinhos do gênero Paracanthopoma são todos, na realidade, bagres, imagine você? E eu aqui pensando que aqueles peixinhos minúsculos que cabem na palma da mão eram mini enguias…
“Mas eles não têm cara de bagre”.
“Têm sim” — respondeu Mário — “Se você olhar de perto, vai ver que todos têm barbilhões”.
Bagre é um nome usado no Brasil. Em todo o mundo, as 2,5 mil espécies (em 33 famílias) da ordem Siluriformes são conhecidas como peixes-gato. Barbilhões são seus “bigodes” sensoriais desse peixe, daí a alusão aos bichanos e seus bigodes (ou vibrissas).
O candiru, ou melhor, a espécie Vandellia cirrhosa, é o membro mais famoso da subfamília Vandelline. As novas espécies, chamadas carinhosamente de “vampirinhos” pelo outro autor do trabalho, Fernando Dagosta, são peixes de água doce restritos à América do Sul, habitando a bacia amazônica, as bacias dos rios Orinoco na Venezuela, Magdalena na Colômbia e Essequibo na Guiana, além da bacia conjunta do Paraná e Paraguai.
“Todas as espécies são hematófagas. Todas se alimentam de sangue, daí o nome peixe-vampiro”, explica o cientista.
Ele ressalta que tal hábito alimentar é raríssimo entre os vertebrados. “As sanguessugas e muitos insetos se alimentam exclusivamente de sangue, mas entre os vertebrados isso é muito raro. Entre os vertebrados há pouquíssimos grupos estritamente hematófagos. Conhecemos apenas os morcegos-vampiros e, entre os peixes, as lampreias, além dos candirus”.
De acordo com Mário, todas as novas espécies de peixes-vampiro foram descritas unicamente com base na análise de espécimes preservados em museus.
“Ué? Mas se são todos exemplares de museus, como vocês sabem que eles são hematófagos?”
“Porque encontramos restos de sangue coagulado no estômago de todos eles”, explicou o pesquisador.
Sobre o fato das novas espécies terem sido descritas unicamente a partir de coleções em museus, Mário observa: “Isto mostra o quão pouco sabemos da nossa biodiversidade, a maior do planeta. Assim como havia nove espécies desconhecidas de peixes-vampiro, há milhares de espécies de animais e plantas que nos são totalmente desconhecidas”.
Mário tem razão quando afirma que o Brasil precisa de inúmeros biólogos taxonomistas para descrever todo o material que se encontra guardado nos acervos científicos dos museus, boa parte deles preservado há décadas. Taxonomistas são biólogos especialistas em identificar, caracterizar, classificar e elucidar o parentesco evolutivo das espécies.
“Boa parte dos espécimes preservados em museus foi coletada em ecossistemas que não existem mais. Foram destruídos. Estes espécimes são os únicos resquícios de que um dia tais ecossistemas existiram”.

A LENDA DO KANDIRÚ
As histórias relacionadas ao candiru são inúmeras, e começaram há muito tempo. A primeira menção amplamente conhecida é do naturalista prussiano Carl Friedrich Philipp von Martius, que explorou o Brasil entre 1817 e 1820. Em seu livro Viagem pelo Brasil (1831), Von Martius refere-se a um evento ocorrido no Pará:
“Não raras vezes ouvimos no Pará sobre os perigos que cercam os que se banham no rio devido a um peixinho chamado candiru. As coisas ditas sobre ele soam tão incomuns que fico realmente temeroso de relatá-las aqui. (…), o candiru dos aborígenes (sic), é um peixinho do comprimento e espessura de um dedo (…) que tem o hábito de entrar com grande impetuosidade e rapidez nas aberturas externas do corpo humano. Assim, causa um acidente muito doloroso e perigoso, pois estica suas nadadeiras e só pode ser retirado com grande dificuldade. O odor das excreções do homem parece atrair os peixinhos, e os índios, portanto, aconselham que, durante o banho, nenhuma dessas excreções seja eliminada e que esse órgão específico seja coberto com cuidado. Os índios que me serviram como barqueiros corroboraram seu relato desse hábito singular relatando vários casos. No entanto, como havíamos observado que a crença no improvável e no excepcional, bem como no medo ridículo de fantasmas, constituía um traço peculiar em seus personagens, seus relatos não nos convenceram até que, por meio de nosso amigo Dr. Lacerda, testemunhas oculares nos tornaram cientes da verdade sobre este assunto.”
Trecho de Viagem pelo Brasil (1831), de Carl Friedrich von Martius
A partir de Von Martius, diversos naturalistas europeus nos legaram relatos semelhantes. Todos mencionam um estranho peixinho com hábitos perturbadores, como, por exemplo: “… ele entra na uretra e no reto, principalmente se alguém, enquanto estiver na água, decidir satisfazer suas necessiadades naturais…”; ou então “… penetra com agilidade de enguia nos orifícios dos banhistas e causa muitos acidentes fatais…” (Gudger 1930, parte 1).
Entre os índios, o peixinho é chamado kandirú, palavra tupi que, confesso, não consegui achar tradução (se por acaso algum leitor souber o significado, por favor, informe nos comentários abaixo).
A espécie do candiru acabou descrita em 1846, e desde então os estudiosos vêm tentando registrar na natureza ou comprovar em laboratório o perigo que ele representa — ainda sem sucesso
Em 2001, por exemplo, um estudo identificou quais compostos químicos poderiam atrair a atenção do candiru. Verificou-se que os bagrinhos não reagiram à presença na água do aquário de potenciais atrativos químicos como amônia, aminoácidos, caldo de peixe ou urina humana. Por outro lado, eles responderam instantaneamente à visão de outros peixes, que foram atacados. Os peixes não tiveram como se defender (observe na foto um candiru entrando nas brânquias ou guelras de um peixinho dourado). Nos rios amazônicos, as presas mais comuns do candiru são tambaquis, pacus e dourados.
No mesmo trabalho, os pesquisadores ponderam que a visão talvez não seja o único sentido usado pelos candirus para encontrar suas presas, uma vez que eles habitam rios de águas tanto claras quanto lodosas e escuras, onde a visibilidade é mínima. Logo, caso existam outros meios do candiru detectar suas presas, estes permanecem desconhecidos.

O ÚNICO CASO REGISTRADO, DE 1997
O único caso documentado de um ataque de candiru em humanos foi relatado pelo urologista amazonense Anoar Samad. Ele conta o seguinte:
“Atendi um paciente de 23 anos, do sexo masculino, que procurou o serviço de urgência com extrema dificuldade para urinar e sangramento pela uretra, com história de que há 3 dias sofrera um ataque por um peixe da região amazônica conhecido pelo nome de candiru e que o mesmo havia penetrado em sua uretra quando estava urinando dentro do rio (…).
O paciente estava com febre, forte dor e sangramento no pênis, impossibilidade de urinar e grande inchaço de bolsa escrotal. Foi levado ao centro cirúrgico para uma endoscopia da uretra e bexiga, o que permitiu ao médico descobrir que peixe tinha 12 cm e que ocupava toda a uretra. “Provavelmente, peixe tentou penetrar na bolsa escrotal, o que explicaria o inchaço da mesma”
“Tive muitas dúvidas em como retirar o peixe, já morto, da uretra devido a extrema delicadeza e seriedade do caso. Pensei em abrir o períneo e retirá-lo por esta via, mas o risco de infecção e de impotência seria muito alto”.
Após várias lavagens da uretra e com equipamento endoscópico adequado, numa cirurgia de duas horas o médico conseguiu retirar o peixe. Depois de receber alta, o paciente não apresentou nenhum tipo de sequela ou importância.
O médico termina seu relato aconselhando que não se deve deixar de usar calção ou biquíni antes de entrar em quaisquer rios da Amazônia.
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