EM BUSCA DO ANCESTRAL DOS CACHORROS

Descubra quem eram, como evoluíram e onde viveram os antepassados de cães, lobos e raposas

Por que alguns grupos de animais prosperam e outros são extintos? Este é o tipo de mistério que mantém biogeógrafos e paleontólogos acordados à noite. Por que, por exemplo, os únicos dinossauros que sobreviveram à extinção do Cretáceo foram as aves, enquanto seus primos gigantescos foram todos obliterados?

No caso das aves e dos dinossauros, ainda não sabemos o porquê da caprichosa seletividade da natureza… Mas no caso da grande família dos nossos melhores amigos, os cães, já se sabe quando, como, onde e por que lobos, guarás e raposas se tornaram os únicos representantes modernos de uma nobre linhagem de 40 milhões de anos representada por dezenas de espécies no registro fóssil. 

Num artigo publicado em fevereiro na revista Evolution, o biólogo Lucas Porto, do Instituto de Biociências da USP e atualmente fazendo pós-doutorado na Universidade de Groningen, na Holanda, investiga a história evolutiva dos canídeos a partir do estudo das 37 espécies viventes e 36 extintas. Seu intuito é compreender os motivos que levaram à evolução e à dispersão dos canídeos pelos continentes. 

“A história dos canídeos teve início na América do Norte há uns 40 milhões de anos. Esta grande família é formada por três linhagens distintas. Duas delas que permaneceram confinadas naquele continente e desapareceram. Já a terceira linhagem foi a que conquistou o planeta. Isso aconteceu há cerca de 11 milhões de anos”, explica Lucas.

 

ancestral canino
ANCESTRAL CANINO – Hesperocyon é o mais antigo membro conhecido da família dos canídeos. Mais parecia uma fuinha (crédito: Mauricio Antón)

 

ORIGEM NORTE-AMERICANA

As famílias dos cães e dos gatos divergiram a partir de um ancestral comum que viveu há cerca de 50 milhões de anos. Naquela época, o período Eoceno, Ásia e América se encontravam conectadas pela Beríngia, no estreito de Behring. De modo que o ancestral de todos os gatos foi parar na Ásia, enquanto o ancestral de todos os cachorros acabou na América do Norte.

Os fósseis dos primeiros representantes da família dos cães, com 40 milhões de anos, foram achados na América do Norte. Naquela época a Beríngia havia desaparecido (ela surgiu e submergiu inúmeras vezes), tornando a América do Norte numa imensa ilha. Foi este isolamento insular a causa da linhagem dos cães ter permaneceu confinada naquele continente-ilha durante os primeiros três quartos da sua história evolutiva.

Existiram três grandes linhagens (ou subfamílias) da família dos canídeos (com d) norte-americanos: os hesperocioníneos, os borafagineos e os nossos familiares caníneos (com n). 

O mais antigo membro da subfamília dos hesperocioníneos é aquele que lhes dá nome, o gênero Hesperocyon (ou cão vesperal), animal que mais lembrava uma fuinha. Os hesperocioníneos se diversificaram na América do Norte no final do Eoceno, quando o clima do planeta era mais quente e aquele continente se encontrava coberto por florestas úmidas. 

Segundo Lucas, “os hesperocioníneos eram pequenos predadores de emboscada. Tinham unhas retráteis, viviam em árvores, eram muito semelhantes aos gatos” (que preservaram tais traços até hoje). Hesperocyon usava suas garras para trepar em árvore. Uma vez lá em cima, observavam suas presas para dar o bote.

Há cerca de 30 milhões de anos, já no período Oligoceno, o clima terrestre resfriou. Isso aconteceu em consequência da separação de América do Sul da Antártida, e subsequente formação da camada de gelo que até hoje cobre aquele contingente no fim do mundo. 

 


ANCESTRAL CANINO – Borophagus foi o maior representante da subfamília dos borafagineos, os “cães trituradores de ossos” (crédito: Mauricio Antón)
 

MOEDORES DE OSSOS

Há cerca de 34 milhões de anos, naquelas mesmas florestas úmidas, apareceu uma segunda família de canídeos. Eram os portentosos borafagíneos, “cães trituradores de ossos”, carnívoros grandes como onças.

“Os borafagineos eram um degrau acima (dos hesperocioníneos). Eram animais muito grandes. Eram os maiores carnívoros de seu tempo”, explica Lucas.

O maior representante da subfamília dos borafagineos foi o gênero Epicyon, que tinha o tamanho de um urso-cinzento (este chega a atingir dois metros de comprimento e 360 quilos). Além de enormes, os borafagineos possuíam mandíbulas anabolizadas, adaptadas para triturar os ossos de suas mega-presas (suponho que venha daí a predileção dos nossos melhores amigos por roer ossos, vai saber?) 

Assim como os hesperocioníneos, os borafagineos eram predadores de emboscada. Mas dado o seu porte, eles não subiam em árvores. “Os borofagineos viviam nas florestas caçando por força bruta mesmo, dando bote, e sendo praticamente solitários”, explica Lucas.

Cada qual ocupando seu nicho ecológico, os borofagineos e hesperocioníneos sobreviveram lado-a-lado até cerca de 20 milhões de anos atrás. Foi quando a subfamília dos hesperocioníneos com o porte de fuinhas finalmente se extinguiu.

Epicyon e seu bando de borofagineos permaneceram como os predadores de topo pelo tempo que as florestas úmidas norte-americanas persistiram. Mas, como nada dura para sempre, os borofagineos receberam um primeiro baque quando, há 20 milhões de anos, no início do Mioceno, os primeiros felinos asiáticos começaram a invadir a América do Norte e competir pela caça.

O pior baque veio há cerca de 11 milhões de anos, já no período Mioceno, quando o clima terrestre resfriou. Na América do Norte, uma consequência do resfriamento do planeta foi o ressecamento do clima. 

Assim, as vastas florestas úmidas cederam lugar a um ambiente de savana ou cerrado, o que em nada favoreceu a sobrevivência das linhagens do Epicyon e os borafagíneos de grande porte. 

Eles não desapareceram imediatamente. Ainda levaria um bom tempo até que a linhagem dos borafagíneos viesse a se extinguir — o que ocorreu há 2,5 milhões de anos. 

 

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ANCESTRAL CANINO – Leptocyon é o mais antigo representante da subfamília do caníneos, aquela dos cachorros, lobos e raposas (Crédito Daniel Allison)

 

CÃES MODERNOS

No jogo da vida há perdedores e ganhadores. Há 11 milhões de anos, a abertura de savanas foi o fator determinante a favorecer uma terceira linhagem de cães norte-americanos. Naquele momento, os nossos conhecidos caníneos (com n) saíram da obscuridade e passaram a predominar o registro fóssil. 

O fundador da linhagem dos caníneos deve ter sido provavelmente um animal médio, porém veloz. Dele descende o gênero Leptocyon (ou cão delgado). Muito embora o mais antigo representante de Leptocyon tenha 34 milhões de anos, ou seja, foi contemporâneo dos primeiros borafagíneos, sua dinastia teve que permanecer à sombra dos grandes moedores de ossos por 20 milhões de anos.

Leptocyon e sua matilha conseguiram sobreviver nas pradarias da América do Norte por ocuparem um nicho ecológico intermediário. A estratégia adaptativa para compensar a ausência da musculatura e força bruta de um borafagíneo pode ter sido a caça em bandos e por longas distâncias, como as matilhas de lobos fazem até hoje.

“Os caninae têm quatro dedos na planta das patas. Hesperocioníneos e borafagíneos tinham cinco. A perda do quinto dedo (na verdade, ele sobreviveu. Apenas não toca mais o solo) permitiu aos caninae percorrem longas distâncias. Eles se tornaram maratonistas. Caçavam suas presas por exaustão e por emboscada”, diz o Lucas.

 

ANCESTRAL CANINO – Dois lobos-cinzentos (e um urso-cinzento). Cachorros ainda snao geneticamente lobos

 

VIA DE MÃO DUPLA

Como Beríngia era uma via de duas mãos, assim como os felinos vieram de lá para cá, da América do Norte os caníneos tomaram o sentido contrário e foram contribuir para o plantel de carnívoros do Velho Mundo. 

Ao se dispersarem, os caníneos acabaram por originar o grupo que reúne os lobos, que evoluíram na América do Norte, e os chacais, na África. Quanto às raposas, estas evoluíram na África há 9 milhões de anos.

Durante quase toda a longa história evolutiva da família dos cães, a América do Sul encontrava-se isolada, uma ilha-continente. Mas há cerca de 8 milhões de anos, um colar de ilhas começou a emergir do oceano, formando um caminho de pedras entre as América Central e do Sul. 

Foi saltitando de ilha em ilha, num trajeto que eventualmente emergiu por completo, sedimentando o istmo do Panamá, que os cães puderam finalmente colonizar nosso continente. O terceiro grupo dos canídeos modernos é o Cerdocyonina. É exclusivamente sul-americano, e seus representantes mais célebres são o lobo-guará e o cachorro-vinagre. 

De acordo com Lucas Porto, “os ancestrais dos três principais clados de Caninae estão associados a regiões complementares do globo: a maioria dos ancestrais dos lobos foi encontrada na América do Norte, a maioria dos ancestrais das raposas foi encontrada na África e os ancestrais dos canídeos sul-americanos estavam concentrados na América do Sul”.

Segundo o pesquisador, “os lobos migraram pela primeira vez para o Velho Mundo via uma linhagem de cerca de 10 milhões de anos, dando origem às espécies atuais que se distribuíram pela África, Oriente Médio e América do Norte”. 

“As raposas iniciaram um processo de diversificação no norte da África, área onde o grupo está ao longo dos últimos 8,5 milhões de anos. Foram as linhagens africanas que se espalharam pelo mundo, originando as raposas europeias, asiáticas e norte-americanas”.

Esta história acaba a cerca de 23 mil anos, na Sibéria, quando bandos de caçadores-coletores pegaram para criar filhotes das matilhas de lobos-cinzentos. Cruzando continuamente os lobinhos mais dóceis, até eventualmente obter um lobo domesticado e obediente ao homem, o nosso melhor amigo. Por fim, sabem do que foi feito dos lobinhos menos dóceis? Eles foram comidos… por que você acha que hoje na China devoram-se 4 milhões de cachorros todos os anos? Barbaridade.

 



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